Uma solidão de Vitor Gaspar

Há fil­mes que gosto de osten­tar, há fil­mes que gosto de escon­der. Exibo Play­time, do fran­cês Jac­ques Tati, como um dos meus emble­mas de bom gosto, comé­dia satu­rada de inte­li­gên­cia e inven­ção, coberta, se olhar­mos bem, por um ima­cu­lado len­çol de lírica tris­teza.

The Party, do ame­ri­cano Blake Edwards, inter­pre­tado pelo inglês Peter Sel­lers, é um dos meus clan­des­ti­nos “fil­mes de culto”, espé­cie de reserva emo­ci­o­nal que pre­servo de even­tu­ais incom­pre­en­sões alheias.

Vi Play­time e The Party em Luanda, quase na mesma altura, entre os 15, 16 anos, quando come­cei a falhar os pic­nics fami­li­a­res na praia. Era um tempo feliz, de som­bras e ovos ver­des e de um mar ino­cente em que até os cama­rões se riam de ver os caran­gue­jos a cor­rer de mar­cha atrás.

Blake Edwards e o pro­du­tor, Wal­ter Mirisch, con­ven­ce­ram os finan­ci­a­do­res a inves­tir mostrando-lhes umas pou­pa­das 63 pági­nas de script. Era o que tinham, 63 folhas des­cre­vendo uma festa na man­são de um pro­du­tor de Hollywood. Por engano, um jovem actor indi­ano, mais figu­rante do que actor diga-se, era tam­bém convidado.

Hrundi Bakshi, o per­so­na­gem indi­ano que nin­guém na festa conhece e nin­guém sabe como ali veio parar, faz as des­pe­sas do filme. Ia dizer que é a mais inad­jec­ti­vá­vel inter­pre­ta­ção de Peter Sel­lers, mas vou já cor­ri­gir. Em nenhum filme alguém foi, com excep­ção do pró­prio Jac­ques Tati, mais “tati­ano” do que este Sel­lers, cre­dí­vel e gen­til­mente indiano.

No Tati de Play­time, no Sel­lers de The Party, há uma soli­dão de Vitor Gas­par. (*) Anima-os uma von­tade de fazer bem que desa­gua na catás­trofe. Impele-os um desejo de ser­vir o pró­ximo que pre­ci­pita o aci­dente: The Party des­trói salas, casas de banho, uma pis­cina, toda uma man­são; Play­time arrasa a noite de inau­gu­ra­ção dum res­tau­rante ultra-moderno. São fil­mes que não se con­tam, vêem-se.

Edwards e Sel­lers tinham jurado não vol­tar a tra­ba­lhar jun­tos. Em The Party deixaram-se levar por uma cri­a­tiva impro­vi­sa­ção e no pla­teau o ambi­ente foi de pic­nic. Julie Andrews, a namo­rar Edwards, e a sexy Britt Ekland, mulher de Sel­lers, tra­ziam ces­tos de comida caseira. As sobre­me­sas eram por conta do can­tor Andy Wil­li­ams, casado com Clau­dine Lon­guet, a fran­ce­si­nha que era uma man­cha de doçura no filme. (Na vida real matou o segundo marido a tiro, mas há quem diga que foi acidente).

Edwards e Sel­lers inspiraram-se em Play­time. Sel­lers pas­se­ava gen­til­mente o seu caó­tico autismo, enquanto Edwards orga­ni­zava pla­nos e cenas geni­ais com uma mul­ti­dão de acto­res, man­tendo Sel­lers sem­pre no cen­tro. O filme pare­cia con­de­nado ao sucesso. Estreou a 4 de Abril de 68. Mas nesse dia, em Memphis, assas­si­na­ram Mar­tin Luther King. O véu do luto cobriu a Amé­rica e um silên­cio espesso engo­liu o filme que hoje vos mos­tro às escondidas.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

The Party, no Brasil Um Convidado Bem Trapalhão. Na foto acima, naturalmente, Claudine Longet no filme. 

(*) Vitor Gaspar é, desde junho de 2011, o ministro das Finanças de Portugal.

 

2 Comentários para “Uma solidão de Vitor Gaspar”

  1. Duas grandes e geniais comédias (fazem e farão sempre parte das minhas favoritas, como já tive ocasião de a elas me referir no “Rato Cinéfilo”), mas a analogia com o Vítor Gaspar não podia ser mais infeliz. Monsieur Hulot e Hrundi V. Bakshi são personagens puras e ingénuas, não calculistas, características essas que os conduzem a todas aquelas situações de catástrofe. Ou seja, o inverso do já infelizmente célebre ministro português. Neste é o calculismo, frio e metódico, a casmurrice surda e o slogan salazarento do “orgulhosamente sós”, que nos irá atirar a todos para o lamaçal.

  2. Mas, caríssimo Rato, me parece que o Manuel comparou a solidão dos dois personagens à do ministro. São, os três, solitários – ninguém está ao lado deles. Não?
    Sérgio

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