Uma noite no sótão: com Billy Wilder e Kim Novak

 Este é de 1990. Escrito no “Expresso”, a pro­pó­sito de uma qual­quer exi­bi­ção de Beija-me Idi­ota na RTP 2, retomo-o com liber­da­des. Mais ou menos nessa altura veio cá o Ale­xan­der Trau­ner, que fora deco­ra­dor do Wil­der. Era um meia-leca, velhote, sim­pá­tico, com uma mulher tão meia-leca e sim­pá­tica como ele. Hei-de ver se des­cu­bro a entre­vista que lhe fiz. Mas lembro-me que o levei ao Pavi­lhão Chi­nês – nessa altura levava-se toda a gente ao Pavi­lhão Chi­nês. O Beija-me Idi­ota foi um daque­les fil­mes de preto e branco tar­dio. O público só vol­tava atrás se tivesse des­cul­pas berg­ma­ni­a­nas e a sala fosse de cha­tís­sima arte & ensaio. Uma comé­dia, e ainda por cima com Dean Mar­tin, já só podia ser vista em salas gran­des a cores. Que se lixe, enganaram-se, enganámo-nos: o filme era uma delí­cia. Era e é.   

 Kiss Me Stu­pid de Billy Wilder

Em Um, Dois, Três, filme que de vez em quando a Cine­ma­teca exibe, Billy Wil­der mos­trou como é que se faz comé­dia ao sprint e sem este­roi­des ana­bo­li­zan­tes: é o filme mais rápido que conheço e inven­tou duas Ale­ma­nhas antes de elas existirem.

Beija-me Idi­ota é de uma famí­lia mais repou­sada, uma comé­dia que troca as vol­tas a qual­quer cir­cuito de manu­ten­ção. Basta-lhe ter feito está­gio em Quanto Mais Quente Melhor, assi­nado pelo mesmo rea­li­za­dor, e fazer finca-pé no peri­cli­tante equi­lí­brio entre a ver­dade e a aparência.

Ou seja, a pre­missa filo­só­fica do cinema de Wil­der é esta: a apa­rên­cia dos outros é sem­pre melhor do que a nossa ver­dade. Foi o que disse o pró­prio: «Uma pega sonha pre­pa­rar o jan­tar a um homem e ficar para lavar a loiça. Uma esposa, que pas­sou 25 anos a fazer isso, gos­tava de ir beber um copo com um tipo que aca­bou de conhe­cer e meter-se na cama com ele.»

A atrac­ção pela dife­rença é o motor a dois tem­pos de Beija-me Idi­ota. O com­bus­tí­vel é uma equí­voca mis­tura de pega e esposa, a rimar com «troca de iden­ti­da­des» de Quanto Mais Quente Melhor, um dos fil­mes que Wil­der fez com Marilyn. A acção, e é muita, de Beija-me Idi­ota, passa-se em Clí­max, uma pequena cidade do Ari­zona. Dois resi­den­tes, com­po­si­to­res «nas horas vagas», fazem tudo para reter Dino, um famoso can­tor, de pas­sa­gem para Las Vegas. Que­rem que ele ouça uma can­ção que com­pu­se­ram e que jul­gam ter a estre­li­nha do sucesso. Mas Dino, que por acaso (muito pouco ou nada) é Dean Mar­tin, tem os ouvi­dos a arder: a menos que tenha uma mulher por noite, estala-lhe a cabeça com dores. Começa então a «flo­resta de enga­nos»: um dos «com­po­si­to­res» con­se­gue fazer a esposa sair de casa e con­trata uma pros­ti­tuta — Polly the Pis­tol de sua graça — que fará pas­sar por sua mulher, incumbindo-a de sedu­zir Dino. A ver­dade é que Polly não con­se­gue sedu­zir Dino. A ver­dade tam­bém é que o marido não sabe bem para onde foi a mulher. Seja como for, Dino não sai de Clí­max com as suas ter­rí­veis dores de cabeça. E é ver­dade que Dino, na noite seguinte, apa­rece na tele­vi­são a can­tar a «can­ção de sucesso» dos dois «com­po­si­to­res» de Clímax.

«Por bizarro que pareça, o tema de Beija-me Idi­ota era a dig­ni­dade humana e a san­ti­dade do casa­mento», disse Billy Wil­der que era, como sabe­mos depois de ver Sta­lag 17 ou Irma La Douce, um homem de boa e muita fé. As ligas de decên­cia norte-americanas não acre­di­ta­ram na boa fé de Wil­der e fize­ram ques­tão em prová-lo, pro­mo­vendo um chin­frim capaz de tra­zer à luz e à pureza uma dúzia de Aretinos.

Os crí­ti­cos libe­rais (de esquerda se for na Europa) tam­bém não acre­di­ta­ram, mas esta­vam de acordo com o que não acre­di­ta­vam, vendo no filme o retrato cor­ro­sivo, quase lúgu­bre da «Amé­rica pro­funda». Sucedendo-me ter um pé na decên­cia (sem liga!) e outro numa grande libe­ra­li­dade, e dando-se o caso de, por culpa de uma para­do­xal edu­ca­ção afri­cana, ser um dia euro­peu e no outro ame­ri­cano, eu acre­dito em Wil­der.  Beija-me Idi­ota está para a dig­ni­dade humana como a «bata­lha de Ingla­terra» para a II Grande Guerra e faz da san­ti­dade do casa­mento um valor mais seguro do que os que se escon­dem em Fort Knox.

Agora, do que não pare­cem res­tar dúvi­das, é que a dig­ni­dade e a san­ti­dade se mani­fes­tam pelos mais ínvios cami­nhos e se reve­lam de modo ines­pe­rado, o que, em minha modesta opi­nião, não nos deve tor­nar cép­ti­cos, mas sim gen­tis. É gen­til a visão das «mulhe­res tro­ca­das» deste Wil­der. São sober­ba­mente gen­tis os retra­tos delas, a vir­tu­osa pros­ti­tuta e a dedi­cada esposa com muita von­tade de beber um copo. E é gen­til – e muito menos con­for­mista do que os mais exal­ta­dos ten­de­rão a suge­rir – o «fim feliz» de Beija-me Idi­ota.

Quem não foi gen­til, foi o público. Naque­les anos 60, em que o «des­cuido das senho­ras tirara a ver­go­nha às cri­a­das», nin­guém quis enfiar a cor­ro­siva cara­puça de Wil­der. E ele e o seu argu­men­tista de tra­zer ao pes­coço — o lapi­dado IAL Dia­mond — fica­ram de cara à banda: «Após o fra­casso do filme olhámo-nos durante sema­nas como um casal que tivesse feito uma cri­ança de duas cabe­ças e não ousasse vol­tar a ter rela­ções sexu­ais».

Não acre­di­tem, é mania retros­pec­tiva de Wil­der, para quem vol­tar a ver um filme seu era o mesmo que encon­trar uma antiga namo­rada e pen­sar «Meu Deus, dormi mesmo com ela». E se é ver­dade que bons seios têm gerado maus filhos, visto hoje,  Beija-me Idi­ota é uma namo­rada linda: queremos todos vol­tar a dor­mir com ela.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

Um, Dois, Três no Brasil teve o título Cupido Não tem Bandeira. Stalag 17, Inferno nº 17.

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