Por cada porta que passa, Robert De Niro passa de um passado a outro passado. É sempre “yesterday”, como os Beatles cantam, no Once Upon a Time in America. O filme é de Sergio Leone e dura 50 anos. São 50 anos a andar para trás, à procura do tempo perdido em que a inocência foi ou era possível.
Numa reles casa de banho, há um buraco do tamanho de um melancólico tijolo. O buraco dá para o mais longínquo amor, o primeiro, da personagem de De Niro que é, no filme, rufia e delinquente, mas com um débil fio de humanidade.
Pelo buraco, o miúdo que depois há-de ser De Niro, vê uma diáfana Jennifer Connelly nem sequer adolescente, em pontas, a saia transparente de bailarina. Ela dança entre os sacos de farinha; ele espia-a, a pensar que por aquela farinha dança, elegante, o pão que um dia há-de comer.
Ela sabe que é vista. Chamam-na. Tira a agulha do gramofone e é, quando a música acaba, que começa a música do corpo dela. Oferecendo as costas ao buraco onde se abrem os olhos dele, despe-se devagar. Toda. A curva das costas, o recorte dos seios, o esplendor das intocadas nádegas. Uma perfeição que a bruta realidade interrompe: o miúdo que há-de ser De Niro tem de fugir apressado.
Mas volta porque ela quer que ele volte. Num sabbath, quando todos foram à sinagoga, finge esquecer-se que deixou a porta encostada e ele entra. A angélica Jennifer diz-lhe que não é preciso ir-se à sinagoga para rezar e recita-lhe o Cântico dos Cânticos. Não há melhor e maior convite ao pecado.
Como no Cântico, ela canta as prendas do amado que a espia. Canta-lhe a cabeça de ouro puro, embora saiba e diga que aquela cara suja nunca viu água limpa. Sussurra-lhe que é de marfim lavrado o corpo dele e as pernas duas colunas de alabastro, infelizmente tapadas por ceroulas tão porcas que ficarão de pé mesmo que as tire. Ele nunca deixará de ser um bandido de rua, um escroque, assim é o seu amado que, por isso, nunca será o seu amado. E beijam-se no único beijo, desajeitado, lírico, que algum dia darão.
De Niro ainda não sabe, mas da vida toda que tem para viver, tudo lhe roubarão: será traído pelo amigo, roubado do dinheiro que juntos roubaram e, última gota do cálice, roubado até do amor sonhado pelo buraco de um tijolo. Uma vida inteira e o único e inesquecível consolo é a inocência do primeiro e ansioso beijo de um sabbath.
Fui menos roubado, e a primeira vez que cantei o Cântico dos Cânticos foi com a mão: a minha pousou desajeitada sobre a nua coxa de uma doce Jennifer. Eu ainda longe da “idade de homem” e ela, ligeiramente mais velha, em shorts de país tropical. O gesto foi cândido, mas o calor da lábil curva inflamou de repente parte do meu ego. Já não me lembro se ela trazia blusa ou de que cor, resta-me o ardor, o mesmo doce ardor, na palma da mão.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
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Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia