Enterremos hoje os nossos sonhos como ontem Michael Corleone enterrou os dele. Foi no primeiro, o mais perfeito The Godfather. Don Vito Corleone já fora baleado antes. Ouvira-se o barulho seco dos tiros e o Padrinho dançara hesitante, um pé a fugir ao outro, o vulto patriarcal a tombar sobre uma banca da fruta e legumes. Duas, talvez três balas no corpo, e uma laranja a rolar no cansado alcatrão.
Don Vito sobreviveu, mas Sonny, o filho herdeiro, não teve a mesma sorte. Numa portagem – uma Scut? – fizeram dele um passador. Tanto que nem o sangue lhe chega para vir chorar nos mil buracos do seu corpo.
Há, punhais e sangue, um mundo de Macbeth lá fora. Sobreviventes, pai e filho têm de conversar sobre a liderança da família. A cena não existia no livro de Mario Puzo, nem no argumento de Francis Coppola. Marlon Brando, o Padrinho, já só tinha mais 24 horas de filmagens e Coppola precisava de fazer a “passagem” de testemunho. Queria também, diz ele, mostrar o amor de Don Vito e Michael. Chamaram Robert Towne, um obscuro guionista. Viu, em bruto, horas de material já filmado e escreveu a cena. Chegou ao plateau e Marlon Brando pediu-lhe que a lesse em voz alta. Quando acabou, ouviu-se “outra vez” e era a voz de Brando a rescender a maçãs. Towne percebeu que já o conquistara.
Filmaram. No recato de um quintal, Brando e Al Pacino, os dois Corleones, conversam. Uma haste de videira é a ténue alusão à origem europeia que o copo de vinho na mão do patriarca sublinha. Entre sorrisos ternos, na doçura da tarde, dois homens que se amam, matam, um em frente ao outro, aquilo que amam. Don Vito entrega, em duas frases singelas, um império ao filho: um sórdido império de crime e traição. O filho terá de matar para não ser morto e o pai diz-lhe como e quando.
E agora já falam da mulher de Michael, dos que, filhos de um, são netos do outro. No rosto de Pacino esconde-se uma tristeza sem fim, como, no poema de Yeats, a amada morta corre a esconder-se na inalcançável multidão das estrelas. Todas as suas esperanças, vida limpa, verdade e beleza, vão a enterrar, ali no quintal, ao lado da horta onde crescem os tomateiros. E Don Vito, ou talvez devêssemos dizer um bíblico Abraão, sufocando a culpa, dilacera-se evocando um futuro que nunca chegará: um filho senador, um Michael com uma carreira legítima. A desilusão resvala no olhar de Marlon Brando: pelo preço da famiglia acaba de afogar o filho, como na minha infância se afogava uma ninhada de gatos recém-nascidos.
2.500 anos depois, num pátio de Nova Iorque, numa cena de um obscuro argumentista, Abraão consuma o sacrifício do seu filho Isaac. Tudo se repete, menos Deus que já não comparece para travar a mão que se estende contra o menino deitado na lenha do holocausto. Enterram-se os sonhos.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Boa editor. O portuga entende muito de cinema. Consegue ver o que os ignorantes como eu não enxergam. O cara leu o livro, conhece os bastidores, e cria sua própria filmagem. Ler o portuga nos dá oportunidade de rever “O poderoso chefão” com nova e revigorada filmagem, a la fonseca.
Muitíssimo bem escrito, uma maravilha ler artigos deste calibre.
Uma cena de um filme descrita desta forma dá mesmo vontade de voltar a ver “O Padrinho”.
Miltinho e José Luis, o portuga agradece a generosa simpatia com que aqui é lido. Um abraço