Uma das muitas características fascinantes de Os Maias é a forma com que Eça de Queiróz lida com o tempo, a cronologia.
Ao conhecer a História do cinema, aprendi que as primeiras audiências se espantavam com a imagem em movimento do trem chegando à estação de La Ciotat, filmada pelos irmãos Lumière em 1896: assustavam-se, achavam que o trem sairia da tela para avançar sobre as pessoas sentadas diante dela.
Alguns anos mais tarde, as platéias dos cinemas se surpreenderam quando D. W. Griffith lhes apresentou a novidade das ações paralelas: ao mesmo tempo em que tal ação acontecia, uma outra ação, em paralelo, era simultaneamente apresentada. Era difícil, então, para as platéias da nova forma de contar histórias, compreender que estavam sendo contadas duas, ou três narrativas simultaneamente.
Quando, em 1941, em Cidadão Kane, Orson Welles mexeu com a cronologia, misturou ações acontecidas em tempos diferentes, colocou fatos acontecidos hoje antes dos que tiveram lugar no passado, foi um choque tão grande que o filme continua até agora sendo considerado o melhor de todos os que já foram feitos.
Pois Eça de Queiróz já havia mexido na ordem cronológica em Os Maias, lançado em 1888.
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Não quero dizer que Eça foi o primeiro a fazer isso – a desobedecer a ordem cronológica em uma narrativa literária. E não foi mesmo, de forma alguma, como se comenta um pouco adiante. Só quero dizer que, ao ler agora Os Maias, fiquei impressionadíssimo com a forma com que Eça soube lidar com o tempo, a ordem ou a desordem cronológica, muito antes que o cinema tornasse isso algo bastante usual.
Esse detalhe de Os Maias é bom para nos fazer lembrar que a roda foi inventada há muito tempo – e não dá para reinventá-la. Quem achar que um desses Quentin Tarantino da vida reinventou a forma de contar uma história deveria aprender um pouco mais do que aconteceu no mundo antes de nascer.
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Já acontecia nos anos 40, mas em especial nos filmes pós anos 80 ficou muito comum o que eu chamo de narrativa laço. É o seguinte: começa a narrativa num momento crucial, importante, empolgante, intrigante. Aí então vem um flashback, a volta no tempo, e o espectador fica sabendo o que aconteceu com aqueles personagens até o momento de tensão maior, mostrado no início da narrativa. E então, em geral quando faltam uns 20 minutos para o fim do filme, a narrativa chega até aquele ponto mostrado no início, e daí avança para frente no tempo, até o final.
Ou, para usar uma imagem futebolística: seria como se o videoteite de um jogo começasse mostrando um gol que acontece aos 40 minutos do segundo tempo, e em seguida retornasse para o início da partida, mostrando então toda ela.
Narrativa laço: lança-se o laço, volta-se atrás, depois avança-se, fecha o laço, e temos o encerramento.
Frank Capra, por exemplo, fez isso, exatamente isso, em A Felicidade Não se Compra, de 1946.
Eça de Queiróz fez isso com maestria em 1888. Alguns anos antes de o cinema nascer. (Costuma-se usar 1895 como o ano do nascimento da mais nova forma de arte.)
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A trama de Os Maias começa quando Afonso da Maia está reformando sua casa em Lisboa, o Ramalhete, para ali viver com seu neto, Carlos, que está se formando em Medicina em Coimbra. Estamos em 1875.
Depois das dez páginas iniciais, temos um flashback. Volta-se para várias décadas atrásx, para conhecermos a história de Afonso, sua juventude, seu casamento com Maria Eduarda Runa e depois a história trágica de seu filho único, Pedro.
No capítulo III, página 69 da edição que li, Pedro está morto. Seu filho, Carlos da Maia, é um garotinho. Afonso, o avô, está embevecido com o neto. A partir daí, a narrativa se dá na ordem cronológica; avança-se para quando Carlos é homem feito, voltando de Coimbra com o diploma de Medicina; o final da história se dá em 1887. Um ano, portanto, antes de o livro ser lançado.
O que também é fascinante. Os primeiros leitores de Os Mais leram uma história que acabava naquela sua época, nos dias em que eles viviam.
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De fato, a roda foi inventada há muito tempo – e não dá para reinventá-la.
Poucos dias depois que postei aqui este meu comentário, recebi de José Luís Fino Figueiredo – que conheci na internet, e de quem já me considero amigo – duas mensagens, que vão abaixo, ao final do meu texto. José Luís vive, por coincidência, a uns 2 quilômetros da casa onde Eça viveu em criança, Verdemilho, Aveiro. Ele me chama a atenção para o fato de que isso que chamo de narrativa laço é tão antigo quanto andar para a frente.
Os Lusíadas começa com uma narrativa laço!
E antes que Luís Vaz de Camões utilizasse esse recurso no poema épico publicado em 1572, Dante Alighieri já o havia usado na Divina Comédia. E, séculos antes dele, Homero, na Ilíada.
Há séculos a narrativa tem um nome, que eu desconhecia por completo: in medias res. Está, conforme me mostrou José Luís, na Infopédia da Porto Editora: “In medias res. Expressão latina que significa ‘no meio das coisas’. Técnica narrativa literária que consiste em relatar os acontecimentos da história, não pelo seu início (ab ovo ou ab initio), mas pelo momento crucial e pelo meio da ação, como forma de cativar a atenção do leitor.”
Minha ignorância a respeito de quão antigo é esse recurso narrativo, no entanto, não diminui o brilho com que Eça de Queiróz fez uso dele em Os Maias.
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Algo me choca profundamente com referência a Os Maias: muita gente se permite contar o que só é claramente revelado na página 785 do livro.
É muito doido, insano, maluco. O camarada escreve 785 páginas antes de revelar um determinado fato – e muita gente, mas muita gente mesmo, trata desse fato como se fosse a coisa mais normal. Basta dar uma olhada na internet, e praticamente todos os endereços que falam do livro contam o que Eça leva 785 páginas para contar.
É um crime, é um pavor, é um horror.
E de repente me ocorre: deve ter a ver com vestibular! Como exige-se em vestibular a leitura de alguns clássicos, professores e cursinhos fazem resumos dos livros. E, nos resumos de Os Mais, seguramente contam o que o leitor só vai ficar sabendo na página 785!
Se na internet se dissesse quem é o assassino de cada um dos livros de Agatha Christie, cacete! Haveria certamente uma onda contra esse absurdo.
Mas o pior é que esse crime anti-Eça não é recente, não é coisa do mundo pós-intenet.
Assim que terminei de ler as 960 páginas de Os Maias, fui dar uma olhada num livreto editado pela Agir, sobre a obra de Eça de Queiróz, da série “Nossos Clássicos”, que por algum motivo comprei em 1966. Esse livretinho aziago não apenas revela o que não deveria jamais ser revelado, como também traz pelo menos uma informação errada, exatamente sobre esse segredo que o livro só revela na segunda metade do segundo volume.
Naturalmente, não vou aqui falar sobre esse segredo chave do livro.
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Uma outra característica fascinante do romance gigantesco, ainda com relação ao tempo, é como Eça o trata de formas diferentes, até opostas – às vezes o torna elástico, outras, compacto. São quase mil páginas para contar uma história de três gerações, indo de fatos dos anos 1840 até 1887. Porém a narrativa varia ao sabor do gosto do autor. Há ocasiões em que um determinado episódio, um jantar, uma conversa, um passeio, é descrito nos mínimos detalhes, e ocupa dezenas de páginas. E, ao contrário, há ocasiões em que em poucos parágrafos o livro narra acontecimentos de vários anos.
E isso é feito, me parece, com grande maestria.
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Eça se apega demais a pequenos detalhes, em especial na descrição das roupas e do mobiliário, dos enfeites dos lugares, dos cheiros.
Eis um exemplo, tirado do capítulo XI, o primeiro do segundo volume na edição que li, quando Carlos da Maia vai pela primeira vez à casa alugada onde está morando Maria Eduarda, até então conhecida como a mulher do brasileiro Castro Gomes, para ver a governanta inglesa, Miss Sara, que estava doente.
“Quando ele (o criado) finalmente saiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma volta curiosa e lenta pela sala. O soalho fora esteirado de novo. Ao pé da porta havia um piano antigo de cauda, coberto com um pano alvadio; sobre uma estante ao lado, cheia de partituras, de músicas, de jornais ilustrados, pousava um vaso do Japão onde murchavam três belos lírios brancos; todas as cadeiras eram forradas de repes vermelho; e aos pés do sofá estirava-se uma velha pele de tigre. Como no Hotel Central, esta instalação sumária de casa alugada recebera retoques de conforto e de gosto: cortinas novas de cretone, combinando com o papel azul da parede, tinham substituído as clássicas bambinelas de cassa; um pequeno contador árabe, que Carlos se lembrava de ter visto havia dias no tio Abraão, viera encher um lado mais desguarnecido da parede; o tapete de pelúcia duma mesa oval, colocada ao centro, desaparecia sob lindas encadernações de livros, álbuns, duas taças japonesas de bronze, um cesto para flores de porcelana da Dresda, objectos delicados de arte que não pertenciam decerto à mãe Cruges (a dona da casa alugada a Maria Eduarda). E parecia errar ali, acariciando a ordem das coisas e marcando-as com um encanto particular, aquele indefinido perfume que Carlos já sentira nos quartos do Hotel Central, e em que dominava o jasmim.
“Mas o que atraiu Carlos foi um bonito biombo de linho cru, com ramalhetes bordados, desdobrado ao pé da janela, fazendo um recanto mais resguardado e mais íntimo. Havia lá uma cadeirinha baixa de cetim escarlate, uma grande almofada para os pés, uma mesa de costura com todo um trabalho de mulher interrompido, números de jornais de modas, um bordado enrolado, molhos de lã de cores transbordando de um açafate.”
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Este foi só um exemplo. Toda a obra é repleta de descrições assim.
De descrições assim, e de diálogos entre os personagens, em especial entre os amigos de Carlos e de seu avô Afonso. Às vezes conversas sobre artes – literatura, teatro –, sobre política, sobre fatos recentes. Small talk, diriam os ingleses. Papo abobrinha, diríamos nós. Conversa mole. Conversa sem qualquer importância, conversa social durante um encontro, um jantar, um passeio.
Nada fundamental para o enredo, para a trama, para a história em si. Reveladoras, é claro, do contexto, da sociedade portuguesa da época. Pequenos detalhes deste grande afresco.
Me peguei pensando algumas vezes, enquanto lia o catatau, o seguinte: fosse Eça de Queiróz mais ourives, mais cuidadoso, tivesse ele tido tempo e interesse para reler e reler e retrabalhar o texto, teria ele enxugado sua obra gigantesca? Teria ele talvez extirpado algumas passagens inteiras, alguns personagens secundários, absolutamente desnecessários para o desenrolar da trama em si?
Há 161 personagens no livro, segundo levantamento de um site chamado Lithis – lithis.net, que também fornece um resumo detalhado do livro, capítulo por capítulo – http://lithis.net/36. Há de tudo na internet.
Seria possível reduzir o tamanho colossal de Os Maias?, me perguntei algumas vezes.
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Em parte, a rigor, a rigor, acho que sim, acho que teria sido possível. Quase todo o primeiro volume, os dez primeiros capítulos, é uma preparação para o encontro entre Carlos e Maria Eduardo, que se dá exatamente no capítulo XI, logo após aquela descrição da sala que transcrevi acima.
Sim, muita coisa do primeiro volume poderia ter sido cortada, extirpada, sem grande prejuízo para a trama em si.
Mas e daí? Para quê? Com que intuito? Aí Os Maias não seria Os Maias, seria outra coisa diferente. Há os autores que buscam a brevidade, a secura, os Ernest Hemingway, os Graciliano Ramos – para não chegar ao absurdo que é Dalton Trevisan. E há os prolixos, os detalhistas, os palavrosos, os caudalosos, como o Tolstói de Guerra e Paz e Anna Karênina, o Dostoiéviski de Crime e Castigo e Os Irmãos Karamázovi, o Bóris Pasternak de Doutor Jivago.
Não, não, não – ainda bem que Eça não cortou coisa alguma. Os Maias é um belo romance, entre outros motivos, porque é exatamente como é, cheio pequenos detalhes que não importam muito, personagens que não são fundamentais, conversas banais. Um conjunto que é sólido, firme, fascinante – certamente a melhor descrição da sociedade portuguesa do século XIX que existe.
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Pensei em fazer uma tabela para visualizar com facilidade as datas, as coincidências (ou não), quem veio primeiro que quem.
1837-39 | As Aventuras de Oliver Twist | Charles Dickens, Inglaterra |
1862 | Os Miseráveis | Victor Hugo, França |
1866 | Crime e Castigo | Fiodor Dostoiéviski, Rússia |
1869 | Guerra e Paz | Liev Tolstói, Rússia |
1876 | O Crime do Padre Amaro | Eça de Queiróz, Portugal |
1877 | Anna Karenina | Liev Tolstói, Rússia |
1878 | O Primo Basílio | Eça de Queiróz, Portugal |
1880 | Os Irmãos Karamázovi | Fiodor Dostoiéviski, Rússia |
1881 | Memórias Póstumas de Brás Cubas | Machado de Assis, Brasil |
1885 | Germinal | Émile Zola, França |
1888 | Os Maias | Eça de Queiróz, Portugal |
1891 | Quincas Borba | Machado de Assis, Brasil |
1895 | Judas, o Obscuro | Thomas Hardy, Inglaterra |
Vixe Maria! Um quadro com os grandes romances escritos entre 1937 e 1995 conteria tantas obras-primas? Ou o século XIX foi, de fato, sem dúvida alguma, o século de algumas das obras mais geniais que a humanidade soube produzir?
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Uma das mais fascinantes características de Os Maias, para mim (e acho que para qualquer leitor) é a genial descrição de como as emoções e os pensamentos das pessoas vão mudando de momento a momento.
E aí me permito uma pequena digressão para lembrar algo muito pessoal. Quanto eu tinha 15 anos, a professora Ivana nos falou de como Os Maias mostra essa coisa das emoções e pensamentos que mudam a cada momento. Nunca consegui me esquecer disso.
Ter Ivana Versiani como professora foi uma das sortes grandes que tive na vida. Nos cinco anos de Colégio de Aplicação, em Belo Horizonte, tive professores excepcionais, estupendos. Mister Hélcio, o cara que me ensinou inglês tão bem que quando fui fazer teste na Cultura Inglesa, anos mais tarde, no exílio em Curitiba, entrei direto para o que então era o quinto ano, pouco antes do primeiro exame de Cambridge, o Lower. Dona Beatriz, a professora de História que foi paraninfa da nossa turma do ginásio, e me deu gosto pela matéria, um gosto que nunca perdi, que sempre aumenta. E Vivina, é claro, que mais que me ensinar o francês (com o qual consegui me virar, cinco décadas depois, em Paris, mas, principalmente, consegui compreender o que diziam Moustaki, Brel, Bécaud, e os personagens de Truffaut e de todos os que vieram antes e depois dele), me ensinou sobre a vida e acabou, através do Gilberto Mansur, me levando ao jornalismo.
Ivana me ensinou muito do que sei sobre literatura. Me ensinou a respeitar os clássicos, a ler os clássicos.
Todas as pessoas deveriam ter Ivana, Beatriz, Hélcio, Vivina, na vida.
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Eça mostra, em várias ocasiões, em Os Maias, as imensas distâncias entre intenção e gesto, entre o que se deseja e o que se faz, entre o que se pretende, se quer fazer, e o que se acaba fazendo.
De uma certa forma – penso aqui, com toda a possibilidade de estar errado, é claro –, Eça se antecipou a Freud, e, especificamente na literatura, ao stream of conciousness de James Joyce, nos momentos em que mostra essas distâncias.
São vários os momentos, mas o mais extraordinário, me parece, é quando Carlos da Maia recebe a visita do brasileiro Castro Gomes, que lhe revela verdades sobre Maria Eduarda. Entre o momento em que Carlos fica sabendo das informações sobre a amada e o momento em que finalmente ele a revê, passam pela cabeça dele diferentes decisões, diferentes tomadas de posição. As tomadas de posição vão se esvaindo à medida em que ele se encaminha para reencontrar Maria Eduarda.
Só por esse momento, só pela descrição das mudanças de sensações, sentimentos, determinações, do personagem central do romance, Os Maias já seria um livro extraordinário.
A professora Ivana já nos mostrava isso, quando tínhamos, todos, 15 anos de idade.
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E então me permito mais uma rápida historinha pessoal. Semanas atrás, tive um encontro com meu irmão Geraldo e Jorge Teles – uma rara reunião, décadas depois, dos três rapazes que dividiram uma casinha no Guabirotuba em 1967 –, e falamos sobre livros. Numa conversa com Jorge, fala-se de todos os assuntos possíveis, numa velocidade alucinante, atordoante. Lá pelas tantas, comentei que não consegui passar das primeiras páginas de Pantaleão e as Visitadoras, de Vargas Llosa. Achei chato, e, como a vida é curta, parei de ler antes de chegar à décima página. Geraldo e Jorge gostaram muito de Pantaleão – e Jorge, o sujeito que conheço que já leu mais coisa na vida, comentou: “Pois aconteceu a mesma coisa comigo com Os Maias. Achei chatíssimo e abandonei no comecinho”.
Cada cabeça, uma sentença.
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Uma notinha ruim: Eça deixa escapar preconceito. Mostra preconceito contra os judeus, e também contra os negros. Claro: isso é lamentável, lastimável, condenável em todas as instâncias.
Bem – Eça não traficou escravos, como fez Rimbaud.
Mas que é lastimável, é. Sem dúvida alguma.
Pior ainda do que isso, ou tão ruim quanto isso, é a forma com que Eça vê as mulheres.
É impressionante a quantidade de mulheres casadas que dão para fora. Bem, tão impressionante como a quantidade de homens que comem mulheres casadas.
Pelo retrato que Eça faz, todas as mulheres burguesas de Portugal dão para fora. Todos os homens burgueses de Portugal são cornudos, chifrudos.
E, aparentemente, Freud explica.
É muito estranha a história dos pais de Eça.
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Pelo que se lê na internet – e é claro que não se pode confiar em tudo que se lê na internet –, o pai de Eça, José Maria d’Almeida de Teixeira de Queirós, embora formado em Direito em Coimbra, embora magistrado, era socialmente inferior à mulher com quem iria se casar, Carolina Augusta Pereira de Eça. A mãe de Dona Carolina não teria aprovado o casamento com José Maria – e então o primeiro filho do casal, ele, José Maria de Eça de Queiróz, nasceu de uma união não formalizada. E foi então “batizado como ‘filho natural de José Maria d’Almeida de Teixeira de Queirós e de Mãe incógnita’, fórmula comum que traduzia a solução usada em casos similares nos registos de batismo quando a mãe pertencia a estratos sociais elevados”.
O casal José Maria e Carolina viria a se casar de papel passado após a morte da mãe dela, e teria vários filhos, todos com certidão de nascimento com nome de pai e mãe.
Mas o primogênito, gerado fora do sagrado matrimônio, teria sido rejeitado por pai e mãe, e criado por uma ama.
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E aqui não consigo deixar de me lembrar daquilo que se diz do México: pobre México, tão perto dos Estados Unidos, e tão longe de Deus.
De Portugal se poderia dizer algo bem parecido: pobre Portugal, tão perto da Europa, e tão longe de Deus.
E de Eça, nascido afinal em 1845, a sociedade européia já tão avançada, a Revolução Industrial já completando um século, o absolutismo já tão distante, as guerras napoleônicas já passadas, poderíamos dizer: pobre Eça, tão perto do mundo moderno, e tão longe de Deus.
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Talvez o mais marcante de tudo, em Os Maias, seja o fato de que é uma obra feita no meio da transição, ou de muitas transições. A transição do romantismo para o realismo, ou para sua exacerbação, o naturalismo. A transição de um Eça da idade adulta para a maturidade plena – ele tinha 43 anos quando o livro foi lançado. A transição de uma sociedade caquética, que exigia documentos para permitir o amor dos pais para os filhos, para um tempo mais moderno.
De uma certa maneira, não é apenas Carlos da Maia que não sabe o que fazer com seu amor por Maria Eduarda. O próprio autor, o homem que maneja os marionetes, não está muito certo sobre como ver o que está acontecendo.
Me parece que o próprio Eça estava sendo pego no contrapé. Antes, era simples: ou bem as mulheres eram santas, ou bem as mulheres eram seres ignóbeis, adúlteras, pecadoras. Ele tinha diante de si um mundo em mudança, e ele mesmo já não sabia como interpretar o que via.
Como era um escritor genial, fez uma obra genial.
Que cada pessoa julgue o que Eça quis dizer com Os Maias.
Junho de 2012
Sérgio, Sérgio!
Ando sumida desse seu espaço, acontece. Mas, quando reapareço, me emociono. Sempre acontece.
Seu texto me deu vontade de reler Os Maias, juro. Mas o tempo tem ficado cada vez mais curto, as releituras brigando com as virgindades. Temos de correr. Envelhecemos,
acontece.
Não te ensinei nada, meu amigo, nem tenho esse poder. Nos conhecemos, foi isso. Nos descobrimos, sem medos nem máscaras. Nos deixamos nos estimar, e deu certo. Aconteceu, acontece.
Beijo carinhoso
Vivina
Gostei muito de ler este artigo sobre um livro de um conterrâneo, o grande Eça de Queiroz.
Há muitas observações fascinantes e vou ter que o ler de novo e depois lhe direi algo.
Curiosamente vivo a uns 2 Kms da casa onde Eça viveu em criança, Verdemilho, Aveiro.
Não sei em que estado se encontra a casa actualmente, se ainda existir.
A última vez que a vi estava praticamente em ruínas e o seu destino pareceu-me evidente.
Vou passar por lá para ver se ainda existe.
Nossa, caríssimo José Luís, não sabia dessa fantástica coincidência de você morar tão perto da casa em que o grande Eça viveu em criança!
É estranho, e fascinante, essa sensação de que o mundo é uma pequena aldeia. Já faz um bocado de tempo que conversamos por mensagens, você e eu, a tão pouco que já o considero como um amigo… Já temos falado sobre filmes, sobre músicas, e também sobre o estado atual de Portugal, um país que admiro sobremaneira, mas de fato é fantástico saber que você mora a apenas 2 km da casa em que Eça morou! Pena que a casa esteja em ruínas. Aí, como aqui, trata-se então do patrimônio histórico e cultural com descaso…
Quem sabe um dia ainda visito você, José Luís…
Um grande abraço.
Sérgio
Vivina,
Sua mensagem é linda. Como tudo que você escreve. Como tudo que você faz.
Um beijo.
Sérgio
Caro Sergio: aquilo a que chama “narrativa laço” tem um nome que é este:
In medias Res.
“Expressão latina que significa “no meio das coisas”. Técnica narrativa literária que consiste em relatar os acontecimentos da história, não pelo seu início (ab ovo ou ab initio), mas pelo momento crucial e pelo meio da ação, como forma de cativar a atenção do leitor. Para além disso, esta técnica permite suprimir incidentes desagradáveis e atenuar os intervalos entre os acontecimentos que, muitas vezes, perturbam a continuidade da ação. A expressão in medias res surge, pela primeira vez, na Arte Poética (linhas 148-150) de Horácio (65 a. C-8 a. C.).
Esta técnica narrativa pode ser encontrada em poemas épicos, romances ou novelas policiais. Destaca-se a sua utilização na Ilíada de Homero, na Divina Comédia de Dante e n’Os Lusíadas de Luís de Camões.”
In Infopédia.
Eu só conheci esta expressão há muito pouco tempo e fiquei espantado por ser tão antiga a prática de contar uma história a partir do meio ou de outro tempo qualquer, até do fim.
Bem,não tive na Escola um incentivo a ler Eça de Queiroz, creio que era considerado revolucionário demais para a cabeça das minhas professoras de Literatura e Língua Portuguesa.
Em verdade, acho que tudo que se referia a Eça e ao realismo em Portugal, foi passado de forma tão rápida que cheguei a vida adulta, pensando em se tratar de uma mulher, pelo nome “Eça”.
Li Eça, a primeira vez, aos 19 anos.
Sei que o foque, aqui, é a obra “Os Maias”, mas entre as que li do autor, não é a que mais me marcou.
O Crime do Padre Amaro é que me deixou, completamente, intrigada. Foi ali que descobri que homem vai muito além do seu tempo, quando a genialidade é parte integrante do seu ser. Sim, considero Eça de Queiroz genial.
Veja bem, em pleno século XIX, ele coloca o dedo na ferida da Igreja Católica, mostrando o submundo, o comportamento paradoxal entre o que se prega no altar e que se vive. Somente, no final do século XX, que vamos ver tais críticas dentro da própria Igreja com o nascimento da Teologia da Libertação na América Latina.
A obediência cega da personagem Ameliazinha que se relaciona com o Padre para servir a Deus, nos remete a Karl Marx: “A Religião é o ópio do povo.” A morte da consciência, a perda total do senso crítico, demonstra que pelo caminho da fé se faz lavagem cerebral e se domina um ser humano, usando as palavras da Bíblia, que para os Cristãos, tem a função de libertar.
Em relação ao assunto central dos “Maias”, lembro de já ter lido, em algum lugar, mas não recordo a fonte. (foi antes do advento do Google), que possivelmente Eça Queiroz é fruto de relação uma incestuosa entre o seu Pai e uma Tia (no caso irmã do mesmo), por isso a ausência do nome da mãe na certidão.
O que há Freudiano nos “Maias”? Seria uma espécie de libertação de uma carga histórica? (Especulação, claro!)
Como essa mesma fonte, apresentava o fato como algo inédito na sociedade do século XIX em Portugal, e, lendo aqui que era uma atitude rotineira em relação a posição social da mãe, tenho mais um questionamento a respeito da vida de Eça Queiroz. De que forma esse homem viveu seu complexo edipiano?
Abs!
Rosana Corrêa