O Brasil é um país estranho.
Sérgio Buarque escreveu que o brasileiro é um homem cordial – no sentido de que age mais com o coração do que com a razão – e logo leram que o brasileiro é uma pessoa gentil, lhana, de fino trato, que é o significado mais corriqueiro e coloquial da cordialidade.
Não era esse, naturalmente, o significado que Sérgio Buarque queria dar ao seu “homem cordial”.
Na semana passada, escrevi algumas observações no Twitter a respeito das declarações do novo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Ricardo Garisio Sartori , sobre as férias de dois meses que a lei concede aos juízes.
O desembargador, para defender a lei, disse que “o legislador sempre tem uma razão” e que provavelmente ao dar dois meses de férias aos juízes estava pensando em preservar “a sanidade mental” deles.
No meu comentário eu disse estranhar que num país que de repente se descobriu tão entusiasmado defensor do igualitarismo, ainda existissem defesas tão enfáticas de privilégios de castas e classes especiais.
Todos são iguais perante a lei, reza o artigo V da Constituição, mas Orwell já advertia que alguns são mais iguais que os outros. E olha que Orwell falava da sua revolução dos bichos, não das peculiaridades da “igualdade” brasileira.
Algum motivo deve haver para que a sanidade mental dos juízes seja mais importante que a sanidade mental dos outros mortais, como os açougueiros, os artistas de cinema, os médicos, os engenheiros, os professores, os jornalistas, os pipoqueiros e todo o resto da atribulada humanidade.
Deve haver também um motivo especial para que eles ganhem mais do que os outros, para que tenham licenças-prêmio de 3 meses a cada 5 anos de trabalho, para que ocupem os prédios mais suntuosos de um país onde 11 mihões de pessoas moram em favelas, barracos, palafitas ou outros buracos, para que recebam auxilio-moradia mesmo trabalhando na cidade onde moram, para que tenham tantos carros ou tantos funcionários à disposição, ou para que estejam a salvo das investigações do Conselho Nacional de Justiça, que afinal foi criado, em última instância, para evitar que abusassem do poder.
Evidente que no Twitter não há nem espaço para enumerar as últimas e polêmicas discussões que envolveram a instituição do Judiciário, deflagradas, por sinal, interna corporis, pela jurista Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça.
Limitei-me a comentar a estranha noção de igualdade que impera em certos círculos num País tão faminto de igualitarismo.
Recebi uma resposta de um interlocutor que contestou o meu comentário dizendo que eu fazia parte “da classe média ressentida”. Não era um interlocutor qualquer, desses que passam o dia disparando interjeições ou espalhando sabedoria pelo Twitter.
Era um juiz federal titular de uma Vara do Amazonas, professor, pós graduado, ex-Procurador Federal e ex-Advogado da União.
Cordialmente, defendia seus privilégios e os de sua classe, pairando olimpicamente acima do plebeu ressentimento da classe média, que não consegue alcançar, em sua espessa e mesquinha ignorância, a necessidade de que alguns sejam mais iguais do que os outros perante a lei.
Descobrimos, afinal, que os juízes, assim como alguns senadores, são pessoas incomuns.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 6/1/2012.