Sentemo-nos, então, na escadaria da Assembleia, aos gritos pelo cinema europeu, a contestar que o cinema seja só americano.
De acordo, o cinema é meio-europeu. Na árvore genealógica há o ramo alemão que, à conta de Hitler, foi fazer a glória de Hollywood: os alemães de Reinhardt e os alemães da UFA. Na foto de família aparecem ainda umas sugestivas caras russas e japonesas, três fantásticas décadas de filmes italianos, os franceses Renoir e Becker. Seja, mas a violência no cinema, o murro, é uma invenção americana.
Preferia ter uma lembrança mais frívola. Não tenho: a primeira vez que, na vida e em Luanda, vi a violência, foi a violência da turba, em 61, na caça de fim-de-semana ao terrorista, depois da revolta nacionalista do 4 de Fevereiro. A multidão branca inventava alvos e eu vi nas mãos de um amigo da família o grosso ramo do coqueiro pintado com o sangue débil do espancamento. Era uma violência envenenada que as envergonhadas mãos das mães nos escondiam dos olhos. De forma surda e sufocada, essa violência bruta e cega da multidão filmou-a um alemão, Fritz Lang, em Fury, primeiro filme que fez na América.
Foi mais bêbada a segunda vez que vi a violência. Eu era um miúdo de 9 anos, parado à porta de uma cervejaria, próxima da livraria Minerva, para os lados da igreja de São Paulo. Ergueu-se uma gritaria urgente. Vi que as vozes levantavam duas mesas inteiras. Um homem segurava nas mãos a cadeira que, descrevendo um gracioso e veloz arco ogival, se fundiu com a cabeça e as costas do seu companheiro da crepuscular cerveja que antecede a recolha doméstica. Se um fino pede outro fino, uma cadeira quer a abençoada companhia de outra cadeira. As cadeiras e os socos pareciam gémeos a abraçarem-se, a rolar pelo chão, a saltar, no que terão sido dois longuíssimos, mesmo seculares, minutos.
Há um filme americano, claro, do americano John Ford, que me restitui a alegria baptismal desse momento pintado a cores de infância. Em The Quiet Man, John Wayne e Victor McLaglen trocam homéricos murros irlandeses, ao longo de dois quilómetros de aldeia. Batem-se pela ruiva Maureen O’Hara, mulher de um e irmã doutro. Ao primeiro soco, o irmão de rastos no chão, a incendiária ruiva, sentindo cumpridos os ritos, vira-se para Wayne e diz-lhe: “Agora, vou para casa. Terás o jantar pronto quando chegares.” Segue-se uma prodigiosa, celebratória, sequência de 10 minutos de pancadaria e humanidade, de potente exibição física e de um humor nem complacente, nem cínico.
Nesta violência amena que Ford repetiria em Wings of Eagle ou Donovan’s Reef, na violência crispada de Don Siegel em Madigan ou Dirty Harry, na exuberante sangria de Sam Peckinpah em Wild Bunch, há um segredo. O murro, mesmo o murro que nos salva, é um exclusivo americano.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.