O mais belo dos filmes


Ao João Bénard, ao Manuel Cin­tra Ferreira

A porta abre-se para a direita, os vio­li­nos entram pela esquerda e a madura silhu­eta de uma mulher recorta-se con­tra a luz do deserto. A mulher, pas­sos hesi­tan­tes, dan­ça­dos, vai da porta para a varanda tosca, a câmara atrás dela. O contra-campo revela-lhe a beleza ansi­osa de anos de sacri­fí­cio e renún­cia. Põe a mão sobre os olhos para deci­frar o vulto de cavalo e cava­leiro que o hori­zonte empurra em direc­ção à casa. Atrás dela surge a indi­fe­rença inter­ro­ga­tiva de um marido e ouve-se a pri­meira pala­vra: “Ethan?” A res­posta sufoca na gar­ganta da mulher. Uma rubra como­ção acorre-lhe às faces, à res­pi­ra­ção que, mais do que o vento, agita a gola da blusa, o avental.

Em 40 segun­dos, contra-luz e contra-campo, a porta que se abre, três acto­res, um só hipo­té­tico nome e a vibra­ção de um vio­lino, John Ford conta, a quem tenha olhos para ver, uma his­tó­ria de amor proibido.

O filme, que uma porta abre e outra porta fecha, é The Sear­chers. Sendo o mais belo dos mais belos dos fil­mes de Ford, é o mais falso wes­tern que já vi. Os cava­los, os índios, até a épica pas­sa­gem das esta­ções, o cíclico galope de des­trui­ção e vin­gança, mal dis­far­çam o ven­da­val de amor proi­bido, que assom­bra as per­so­na­gens, todo o filme.

Disse-se que o som­brio cava­leiro é um Ulis­ses e The Sear­chers a Odis­seia do homé­rico Ford. Mas o cão que da varanda ladra ao fan­to­má­tico Ethan (John Wayne) não é Argos. E muito menos é Pené­lope esta mulher que, farta de espe­rar, casou e teve filhos. Nem os bra­ços do irmão se abrem a Ethan com o afecto de Eumeu ou Telémaco.

Esque­ça­mos Homero, pen­se­mos em Sófo­cles. Longe de Ítaca, no Texas de 1868, Ethan não regres­sou para des­can­sar de pro­di­gi­o­sas aven­tu­ras. É a morte, a morte can­sada, que chega a cavalo. O que depois sucede, a via cru­cis de ata­ques, incên­dios, vio­la­ções, escal­pes, é a ema­na­ção do con­flito que dila­cera Ethan, o arra­sa­dor reflexo do rai­voso desejo dele pela mulher do irmão. E pode tam­bém ser a coisa lar­var que na mulher foi o incum­prido amor ao marido por tanto lhe amar o irmão.

Os olhos maus de Ethan são pio­res do que os olhos cegos de Édipo e a boca dele beija duas vezes a mulher que não pode amar. Beija-a, púdico, na fronte, mas são bei­jos que ras­gam como bacan­tes. E vemos a mulher, sozi­nha no quarto, aca­ri­ciar o capote dele, num plano que vai bus­car a luz a uma janela de Ver­meer. É um capote mili­tar, de devas­ta­ção e crime, que os dedos clan­des­ti­nos dela afa­gam na final e incon­su­mada despedida.

Filme que com João Bénard vi pela pri­meira vez, último filme que vi sen­tado ao lado do Cin­tra, gos­tava de dizer aos dois que The Sear­chers não é um wes­tern, nem um épico. Pura tra­gé­dia grega, caval­gada de res­sen­ti­mento, vin­gança e morte, só a porta que se fecha lhe con­se­gue pôr fim.

O semanário português O Expresso publica os artigos do autor. 

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

The Searchers, no Brasil Rastros de Ódio.

 

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