Na mesma semana em que um casal de moradores de rua da Zona Leste de São Paulo encontrou um saco plástico com R$ 20 mil e avisou a polícia, um garoto pobre, mas com um bom futuro pela frente, furtou da minha casa um iPod.
O garoto, Fábio, veio com Paulo (os nome são fictícios), conhecido nosso de há muito, pessoa do mais fino trato, um faz-tudo competentíssimo que meses atrás fez uma reforma no nosso banheiro e ainda vai fazer muita coisa na casa. Paulo está treinando o garoto Fábio, de 16 anos, ensinando a ele o ofício, os ofícios.
Paulo veio fazer algumas coisas da área elétrica de que precisávamos. Ficaram aqui algumas horas, almoçaram na cozinha.
Na hora em que nos despedimos, disse para o garoto que ele é um sujeito de sorte: está aprendendo um ofício importantíssimo, e, se aprender direito, nunca vai ter falta de trabalho na vida.
– Advogado, por exemplo – disse para ele –, tem demais, de sobra. Gente que sabe fazer isso que o Paulo faz tem pouco. Esses nunca vão ter falta de dinheiro na vida.
Gostaria de ter acrescentado que jornalista, por exemplo, também tem demais, de sobra, mas acabei não dizendo.
***
E aí não consigo deixar de me lembrar de um sujeito, um faz-tudo de hidráulica competente, que durante os anos em que morei no apartamento da Ministro Godoy fez diversos trabalhos para nós. O apartamento era maravilhoso, extraordinário, mas o prédio era bem velho, e a cada dois, três meses, tinha um problema de encanamento, e então aquele profissional bom de serviço, cujo nome não lembro, volta e meia estava lá. As meninas, Inês e Fernanda, eram pequenas, e eu várias vezes dizia para elas que ninguém precisa de diploma de faculdade para ter uma profissão digna e bem remunerada; aquele camarada lá, eu dizia, tinha mais tranquilidade na profissão do que qualquer professor universitário.
Enchi os ouvidos das meninas com essa lenga-lenga. Mal para elas a lenga-lenga não fez. Estão aí as duas maravilhosas, resolvidas, tranqüilas.
***
O garoto Fábio teve a bruta sorte de ter um Paulo como professor do ofício de faz-tudo. Tem, portanto, a chance de ser tão estável no trabalho quanto minha filha.
Mas furtou meu iPod.
É um iPod de 60 giga. Modelo antigo, bem antigo. Comprei de segunda mão no final de 2006. O que uso no dia-a-dia é outro, também antigo, de 80 giga, comprado pelo Wilson Pedrosa para mim na loja da Apple em Manhattan em setembro de 2006 por US$ 400,00, pelos quais paguei R$ 920,00 ao Mané Doleiro. O de 80 uso nas caminhadas, nos passeios, nas poucas viagens que faço, no som do quarto, às vezes no sonzão da sala.
O de 60 fica estacionado na cozinha, junto de um sonzinho humilde mas honesto da Logitech. Ligo quando estou por lá, quando lavo a louça, quando Mary e eu ficamos conversando lá.
Ontem à noite, quando Mary e eu fomos pra cozinha, quis ligá-lo. Não estava no lugar de sempre.
Não levei mais que uns 5 segundos para achar que tinha sido o garoto. Ele tinha sido a única pessoa de fora que tinha estado na cozinha nos últimos dias.
***
É muito ruim suspeitar de alguém que pode ser inteiramente inocente. Mas não havia outra possibilidade.
Às 23h13, Mary mandou uma mensagem de texto para o Paulo.
Às 23h43, o Paulo mandou uma mensagem para Mary se dizendo chocado.
Às 0h53, mandou nova mensagem: tinha ido à casa do Fábio, o garoto de fato estava com o iPod, e ele viria conversar com a gente na manhã seguinte – hoje.
***
Lembro da frase feita que minha mãe, especialista em frases feitas, dizia: a ocasião faz o ladrão.
O garoto viu o iPod. A ocasião havia, de fato.
Penso, aqui com meus botões, que faltou cérebro. Ele achava o quê? Que eu não ia dar pela falta? Que não desconfiaria dele?
Pobre garoto. A vida pela frente, a oportunidade rara de estar aprendendo um ofício, que pode torna-lo tão seguro profissionalmente quanto uma garota muito mais privilegiada que ele, mas que ralou muito, muito, e fez duro concurso e passou, e virou juíza, e tem bom salário e emprego vitalício.
Fernanda e Inês fizeram bah para minhas bravatas sobre a não necessidade de ter diploma, mas se deram bem na vida, graças ao bom Deus, mas graças também ao esforço delas.
***
A rigor, a rigor, a eventualidade de perder meu segundo iPod não me incomodou muito. Não fiquei puto, não subi pelas paredes. Se tivesse perdido, tinha perdido, dane-se. Perder coisas é bobagem: se for o caso, compra-se de novo.
Fiquei foi chocado, estarrecido. É questão de princípios.
Princípios – essa coisa que anda cada vez mais em falta no mundo, no País em especial.
Não vou dizer, é claro, que o garoto furtou o meu iPod por causa do lulo-petismo. Não há relação imediata de causa e efeito. Mas, a rigor, a rigor, tem a ver, sim.
Estamos destruindo os princípios.
A sociedade que criamos, o governo que o país elegeu nas três últimas eleições presidenciais, tudo tem sido uma luta feroz pela destruição dos princípios.
Como se pode tentar ensinar para o filho que o certo é ser honesto e trabalhar, se o ex-presidente passou oito anos se vangloriando pelo fato de não ter estudado? Se o ex-presidente, trabalhar que é bom, jamais trabalhou?
O fato é que estamos permitindo que os princípios sejam destruídos.
***
E, no entanto, o casal sem-teto da Zona Leste encontrou o envelope com R$ 20 mil e o devolveu.
Há milhões e milhões de pessoas como o casal honesto que devolveu a grana. A imensa maioria das pessoas é honesta, tem princípios – ainda, e muito provavelmente para sempre.
Conforme prometeu, o Paulo apareceu hoje na hora marcada para devolver o iPod que o garoto Fábio furtara – e pedir desculpas. Estava, é claro, mortificado, embaraçado, envergonhado.
Quando chegou à casa do Fábio, ontem à noite, o garoto não estava. Ficou conversando com a mãe dele; são vizinhos, amigos; foi o marido dela, o pai de Fábio, que ensinou os ofícios para o Paulo, quando ele era garoto; está agora passando para o filho do mestre o que aprendeu. Faz três meses que está levando o garoto para as obras, e jamais havia acontecido nada parecido.
A princípio, ao voltar para casa e ser confrontado, Fábio negou autoria. Negou, negou, negou – até finalmente admitir.
Paulo vai continuar tocando o treinamento do garoto.
Vai depender dele, do garoto, o futuro. Como no poema de Robert Frost, a estrada se abre em duas.
Torço imensamente para que ele faça a escolha certa.
12 de junho de 2012
EU TAMBÉM, TORÇO QUE ELE ESTUDE E VIRE JUIZ!
SAUDADES DA FERNANDA E DA INEZ.
Pois é. Acabo de presenciar mais uma das maravilhosas cenas de gente com princípios. Um garoto de uns 13 anos corria pela chuva, desengonçado. Na tentativa de pegar o farol da Rua Cardeal Arcoverde aberto para pedestres, nem percebeu que o dinheiro e a conta que levava no bolso para pagar na lotérica do outro lado da rua caíram no chão. Foi salvo por dois frentistas do posto de gasolina, que pegaram as quatro notas de R$ 50 e devolveram para o garoto.
Gente com princípios, gente de bem.
Estou convencida de que a maioria é assim, por mais que os exemplos de cima sejam desavergonhados.