O fim do mundo

O fim do mundo, sim. O começo do mundo, o big bang ou outra hipó­tese mais mítica, pouco me inte­res­sam. Mesmo a ideia de um paraíso cheio de maçãs, uma nudez sem his­tó­ria nem pecado, e uma ser­pente a insinuar-se em con­ver­sas melo­sas, não me farão levan­tar o rabo da cadeira.

Já o fim do mundo, sim. Quero, gos­tava de saber como é que esta hor­ri­pi­lante aven­tura humana vai aca­bar, o que fará o apo­ca­lipse à colec­ção de Joe Berardo no CCB, à dívida sobe­rana de Pas­sos e Gas­par, ao aque­ci­mento glo­bal da RTP. Aca­bará tudo à grega, com um bang, kuduro e a lon­gín­qua estri­dên­cia de uma ópera chi­nesa ou vai tudo aca­bar à por­tu­guesa, mais num sus­piro do que num estrondo, um acorde plan­gente de gui­tarra e depois o vazio?

Fui ver o filme de Abel Fer­rara, 4:44, The Last day on Earth. Mudou muito o fim do mundo no cinema. No meu tempo – e mal sei se dete­nho auto­ri­dade para usar a expres­são – o fim do mundo no cinema era outra coisa. Havia bom­bas, havia maus e bons. O fim do mundo de Abel Fer­rara é intur­bu­lento e inim­pu­tá­vel. No filme dele, vai tudo aca­bar com hora certa e asi­nina jus­ti­fi­ca­ção cien­tí­fica: é um fim do mundo de telejornal.

Antes, Fer­rara lembra-se de inven­tar uma cena, de bom sexo, que torna o apo­ca­lipse dese­já­vel. Um homem mais velho, Wil­lem Dafoe, e a sua jovem amada, Shanyn Leigh, entre a urgên­cia e o estoi­cismo, entre­gam o corpo de cada um às mãos do outro. São mãos que cor­rem pela ondu­lada pele, dedos que pene­tram fis­su­ras ou aflo­ram o que tocado infla. Por­me­no­res, claro, e é por serem por­me­no­res que a cena é tão sen­tida e rara.

É o fim do mundo e mesmo o amor não está para gran­des cor­re­rias, muito menos para per­for­man­ces atlé­ti­cas. Fer­rara filma dedos, arre­pios, con­vul­sões deli­ca­das e inten­sas, um arre­ba­ta­mento de Santa Teresa e São João da Cruz. É mís­tico, mas é sexo, com essa som­bria gota de mis­té­rio que, nos últi­mos 20 anos, pou­cas vezes o cinema lhe con­se­guiu dar.

O fim do mundo, sim. Tal­vez o fim do mundo nos revele o que um per­plexo século de evo­lu­ci­o­nismo não foi capaz de des­ve­lar. Como é que, na admi­rá­vel enge­nha­ria do mundo, de tão eco­nó­mica raci­o­na­li­dade, se explica a sump­tuá­ria dis­si­pa­ção do orgasmo femi­nino? O pro­saico orgasmo mas­cu­lino é auto-explicativo: semi­nal e basta. Mas o esplen­dor, exu­be­rante ou gutu­ral, do êxtase femi­nino é um luxo obs­ceno, espé­cie de Prada ou Gucci da fusão dos cor­pos. Ali, à beira do fim do mundo, Fer­rara ofe­re­ceu aos dedos de Dafoe o pra­zer de, na dúvida, repe­tir uma última vez a pergunta.

É essa fenda do pre­cá­rio saber humano que, nos seus melho­res momen­tos, 4:44, The Last Day on Earth pro­cura fil­mar. Com uma sobri­e­dade que con­tra­ria a fama his­té­rica do seu autor. Mesmo quando, no final, o vidro de uma janela se esti­lhaça e a última luz jorra, abun­dante e cega.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

Um comentário para “O fim do mundo”

  1. Boa a semana, enfim dois bons textos, um do portuga Manuel S.Fonseca e outro do Sandro Vaia. Mais senhor compilador, mais!

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *