Keith Jarrett cria beleza divina diante de nossos olhos

Keith Jarrett presenteou cerca de mil pessoas na Sala São Paulo com nove peças criadas ali, diante dos olhos da audiência.

Lindas, maravilhosas, extraordinárias.

Únicas.

Foram sete peças na primeira parte do concerto, e cinco na segunda, com um intervalo de cerca de 20 minutos entre uma e outra.

Embora cada concerto de improviso de Keith Jarrett seja coisa de algum outro mundo, e cada um seja único, que não se repete jamais, concertos de improviso de Keith Jarrett acontecem vários, ao redor do planeta.

Aconteceu em Köhl, em 1975, o ano em que minha filha nasceu, e nunca mais o universo de concertos de piano voltou a ser o que era antes. Depois aconteceu em Viena, em Tóquio. Em um monte de cidades. Ano passado aconteceu no Rio.

Nesta segunda-feira, 29 de outubro, aconteceu em São Paulo, na Sala que tem o nome da cidade e do Estado de que hoje ela é um dos mais belos símbolos.

Cerca de 40 minutos, sete peças, ou movimentos, na primeira parte, e depois mais ou menos outro tanto, em cinco peças.

Doze peças, ou movimentos, de improvisação ao piano, criadas ali, diante de cerca de mil pessoas privilegiadas. Música sendo criada e apresentada pela primeira e única vez na vida – quem estava ali viu, quem não estava não vai ver nunca.

Um artista diante de uma platéia que parece um tanto diferente de qualquer outro artista. Eu estava diante de um ser de um outro mundo, um E.T., um MIB, um sujeito que não tem nada a ver com qualquer outro tipo de artista deste planeta. Eu, Mary, Fê que nasceu no ano do Köhl Concert com a Bêlinha dela na barriga e o Carlos, mais mil privilegiados.

Já era privilégio demais.

Mas aí aconteceu uma coisa extremamente estranha.

Aplaudimos, berramos, aquela coisa normal. O cara – o E.T., o MIB – voltou para agradecer. Normal.

Mas aí – epa! – Keith Jarrett sentou-se ao piano Steinway para um bis!

Eu jamais havia ouvido falar que, após um exaustivo, excruciante, louco exercício de criar música diante de uma platéia, Keith Jarrett houvesse voltado ao palco para um bis.

Já havia acontecido outras vezes, pelo que verificamos depois. Mesmo assim, é extraordinário.

No bis, Keith Jarrett brindou aquele bando de pessoas privilegiadas com uma das mais incríveis versões de “Summertime” que já foram executadas neste planeta.

Já era mais do que qualquer pessoa poderia esperar – por mais privilegiada que fosse.

Mas ele voltou três outras vezes ao palco da Sala São Paulo!

Keith Jarrett deu quatro bis em São Paulo!

Primeiro, “Summertime”, dos Gershwin. Depois duas peças do mais puro Keith Jarrett, e, para encerrar, um “Over the rainbow” que terá feito Judy Garland chorar de emoção, lá onde está, além do arco-íris.

          ***

A rigor, a rigor, uma das 12 peças que Jarrett apresentou – exatamente a terceira da segunda parte – me pareceu não ter sido um improviso criado ali, no momento. Acreditei que ele improvisou a partir do tema de uma canção que conheço, embora não consiga identificar. No silêncio exigido para um concerto do homem, troquei um olhar com Mary, e percebi que ela também havia reconhecido a melodia.

Creio mesmo que seja uma canção francesa. Vou tentar identificá-la, ainda, nos próximos dias.

Na peça, ou movimento, seguinte, a quarta da parte 2, Jarrett citou, en passant, o “Samba de uma Nota Só”, de Tom e Newton Mendonça.

Das duas peças apresentadas no bis, entre os standards “Summertime” e “Over the rainbow”, não sei bem dizer se foram criadas ali, ou se foram reapresentações de obras dele mesmo.

O que me impressionou demais – e também ao Carlos, à Fê, à Mary – foi que o Keith Jarrett que estávamos vendo não se parecia nada com o Keith Jarrett de que fala a imprensa.

Pinta-se o cara como uma espécie de João Gilberto. Gênio irascível, cheio de onda, pentelho. Se alguém tossir, levanta-se e vai embora, puto dentro das calças, xingando o mundo.

O Keith Jarrett que compareceu à Sala São Paulo não tinha absolutamente nada a ver com essa imagem.

Entrou no palco como se estivesse tentando pressentir o tipo de gente que estava ali. Óculos escuros para enfrentar os spot-lights voltados do teto para ele e o piano Steinway. Calça social preta, camisa de mangas compridas vermelha. Magrinho, magrinho, pequeno – nascido em 1945, está com 67 anos, três a menos que Caetano, Gil, Milton. Empurrou a cadeira com o pé. Pensei: será que está ruim a cadeira?

Ao final da primeira peça, levantou-se, fez uma mesura abaixando a cabeça até bem perto dos joelhos.

A partir da terceira, quarta peça, mostrou-se bem humorado.

Bem humorado!

O Keith Jarrett E.T., MIB, parecia muito mais perto de Paul McCartney do que de João Gilberto.

Claro, Paul McCartney em termos. Não ficou fazendo piadinhas, charminho, tentando falar português, nada disso. Mas chegou a falar umas três ou quatro frases – que a mim soaram absolutamente incompreensíveis. Entre uma peça e outra, ao beber um gole de água, chegou a dizer “Cheers!” para a platéia.

Parecia estar feliz. Ou, no mínimo, parecia estar achando a platéia interessante, interessada.

E voltou para dar bis quatro vezes!

***

O que será que fez Keith Jarrett gostar dessa noite que para nós, na platéia, foi uma noite excepcional, maravilhosa, presente raro dos deuses?

O que ele sentiu que o deixou tão bem humorado, e bem disposto, a ponto de voltar e sentar-se ao piano de novo por quatro vezes?

Jamais vai se saber. Se já é difícil entender o comportamento das pessoas que nos são mais íntimas, como entender como se comporta um ser de outro mundo que pousou na Terra sabe-se por quê?

***

Ah, os privilégios, os privilégios.

Há pessoas que vêm a vida como um privilégio, e não como um direito, diz um personagem do filme O Exótico Hotel Marigold.

Há muitas formas de dividir as pessoas – boas ou más, negras ou brancas, democráticas ou autoritárias, generosas ou egoístas, etc, etc, etc.

Gosto especialmente dessa definição do filme inglês sobre velhinhos que vão para a Índia e, de uma forma ou de outra, acabam se redescobrindo.

Há pessoas que vêem a vida como um privilégio, e não como um direito.

Sou desse primeiro time aí, e sou tão privilegiado que os privilégios não param de cair sobre a minha cabeça.

Enquanto ouvia o som de Keith Jarrett e o via tão próximo, nessa maravilha que é a Sala São Paulo, pensei nisso, em como é absurdo o privilégio de estar ali.

Fernanda, o privilégio dos privilégios, tinha me convidado para irmos juntos os quatro ver o concerto muito tempo atrás, uns três meses atrás. Eu nem sabia que estava programado um dos concertos de improviso de Keith Jarrett para o dia 29 de outubro na Sala São Paulo. Ela convidou, e me ofereci para ir à Sala São Paulo comprar os ingressos, já que, ao contrário dos outros três, não trabalho mais doze, dez, sequer oito horas por dia.

Tenho que agradecer a ela pelo privilégio de ter sido uma das mil pessoas que estavam lá.

Mas ela lembra que a idéia inicial foi do Carlos.

Então tá. Agradeço, em meu nome e no da Mary, ao Carlos e à Fê, porque sem eles não teríamos ido lá.

E penso que a Bêlinha começa bem. Numa semana, ouvindo o mar. Na seguinte, ouvindo beleza divina que sai daquele piano. Vixe Maria.

30 de outubro de 2012

6 Comentários para “Keith Jarrett cria beleza divina diante de nossos olhos”

  1. De São Paulo não vem apenas más notícias. 1000 privilegiados assistiram, numa bela e confortável sala a apresentação de Keith Jarrett. Que inveja. Os grandes artistas, João, Caetano, Keith fazem apresentações intimistas ao contrários dos atuais novos artistas que se apresentam para platéias enormes, as chamadas “galeras” em espetáculos de gosto duvidoso. A vida é um privilégio, o bom gosto musical é uma escolha de poucos, não mais que mil. Para a galera o direito ao mau gosto,representado pelas aprentações ao ar livre e em estádios de futebol transformadas em arenas.
    Bêlinha começa bem!

  2. Não tive o privilégio de escutar “Summertime” na performance de Keith Jarrett, provilégio de apenas mil mortais. Agora na madrugada, pela voz de Nina Simone, me dou conta que Ira Gershwin recebe créditos pela letra poema de DuBose Heyward inspirada numa folclórica canção de ninar.A letra é de DuBose Heyward, o autor do romance Porgy em que a ópera foi baseada, a letra é co-creditada Ira Gershwin.

  3. Adorei, inclusive citei seu artigo no facebook, dei o devido crédito! Dá uma olhada qdo puder! Patricia d’Utra
    abraço!!

  4. Amigo, também fui um desses privilegiados.
    Compartilhei a genialidade dessa sonoridade.
    Uma apresentação de altos e altos, tal como sou habituado a ouvir em suas gravações, mas, nessa oportunidade, com o extase de estar diante do seu criador.
    Summertime também me arrebatou. Nada igual ouvido antes, mesmo em outras gravações do próprio KJ. O mix Jarrett-Jobiniano também foi soberbo.
    De fato uma noite especial, coroada por uma lua cheia.
    Felicitações.

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