Se privilégio matasse, eu estaria mortinho da silva. Exatas 24 horas depois de ver/ouvir Keith Jarrett em lugar privilegiado na Sala São Paulo, vimos/ouvimos Itzhak Perlman em lugar privilegiado no Theatro Municipal.
Alguns anos atrás, quase tive a sorte grande de ver Itzhak Perlman. Ganhamos dois convites para sua única apresentação em São Paulo, em que os 1.500 ingressos era disputadíssimos. Na última hora, aconteceu alguma coisa grave no trabalho que me impediu de ir. Não me lembro o que, mas era um fato importante, urgente, e eu não poderia sair da mesa de editor-chefe do estadão.com.br. Com imensa inveja dela, dei os convites para minha colega Cláudia, fã de carteirinha do violinista.
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Sei pouquíssimo, quase nada de música erudita. Sei tipo 1% dos que têm um conhecimento mediano. Perto de um Roberto Almeida de Mello ou de um Jorge Telles, para citar apenas duas pessoa das minhas relações, sou analfabeto de pai e mãe até a quinta geração. Mas Ytzhak Perlman me deixou uma marca forte.
Acho que foi a partir de A Lista de Schindler. John Williams compôs a trilha da obra-prima de Steven Spielberg – tenho certeza disso, posso apostar – já pensando que sua partitura seria executada por Perlman. Criou as músicas para Perlman executar. Algo mais ou menos assim como um roteirista criar uma personagem sabendo que Meryl Streep irá interpretá-la. Um papel criado sob medida para Meryl Streep tem necessariamente que ser uma maravilha.
Deu no que deu – uma trilha sonora que engrandece um filme que já era gigante.
Schindler é de 1993. Em 1997, vi na revista Premiere americana que acabava de sair nos Estados Unidos um disco chamado Cinema Serenade. John Williams regia a Pittsburgh Symphony Orchestra, com Itzhak Perlman ao violino, em 13 temas de grandes filmes – ou grandes temas de alguns filmes não tão grandes. Não sei se as pessoas naquela época já faziam compras na Amazon; eu não fazia ainda, e por isso pedi a uma amiga que iria passar férias nos EUA que me comprasse o disco. Essa mania de mineiro de pedir para alguém levar uma goiabada para fulano, e trazer de volta uma coisinha que só tem na terra do cumpadre. Márcia Pinheiro, a amiga, tadinha, não reclamou, e me trouxe o disco. Tenho dezenas de discos de trilhas sonoras, mas este com o violino de Itzhak Perlman é um dos meus favoritos. A interpretação dele do tango “Por una cabeza” é uma maravilha, um assombro. Nem Piazzolla, nem Gato Barbieri, nem ninguém conseguiria aquilo.
Um parênteses: o que estaria “Por uma cabeza” fazendo em um disco de grandes músicas de filmes? Pois é. O tangaço genial aconteceu de ser usado na refilmagem americana do filme Perfume de Mulher, de Dino Risi. Se não me engano, é o tango que o protagonista, feito por Al Pacino, dança com a jovem interpretada pela bela Gabrielle Anwar, numa seqüência lindíssima. O filme é mais fraco do que o original, mas a música é de uma beleza extraordinária – e ouso dizer que provavelmente foi Perlman que convenceu John Williams a inclui-la na lista das escolhidas para compor o disco. Perlman, parece, adora tango.
É um músico erudito que gosta de música dita “popular”.
Perlman, na verdade, me parece ter duas faces: uma exclusivamente de músico erudito, outra de popstar.
Um convive com o outro – mas um não molda o outro.
Me impressiona muito como Itzhak Perlman deixou de ser apenas um dos melhores virtuosos do violino da música erudita para ser uma figura adorada por multidões sem ter cedido em absoluta, rigorosamente nada, ao gosto mais fácil da maior parte do público. Não tem nada a ver com os Andre Rieu da vida. O concertista não tentou se tornar mais “popular” para atingir platéias maiores. Aparece na TV, ganha prêmios Emmy por especiais televisivos, virou fenômeno de massa, mas, como concertista, mantém-se rigorosamente fiel ao figurino clássico.
Não faz diluição da música erudita. Não se apega aos temas mais pop do universo clássico, não tenta simplificar para popularizar.
Mas, ao mesmo tempo, curte um popularzinho.
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O recital que apresentou no Municipal de São Paulo apenas na terça-feira, 30 de outubro, depois de uma apresentação única no Municipal do Rio de Janeiro, foi de peças que agradariam ao mais exigente ouvinte de música erudita. Três peças, em ordem cronológica. Um Mozart, a Sonata em Lá maior, K. 526. Depois um Fauré, a Sonata para violino em piano em Lá maior, op. 13. Após o intervalo, um Stravinsky, a Suite Italienne.
Nunca tinha ouvido falar do pianista que o acompanhava, Rohan De Silva. Não é nada estranho que eu nunca tivesse ouvido falar dele, porque de fato não sou desse ramo, mas, pelo que percebi, boa parte da platéia do Municipal também não conhecia o instrumentista. E o fato é que o piano de Rohan De Silva, um músico natural do Sri Lanka, é não menos que brilhante – mesmo para ouvidos ainda não bem saídos do concerto de Keith Jarrett na Sala São Paulo.
Pois muito bem. Três peças não extremamente conhecidas, hits do erudito – executadas com brilhantismo e sem qualquer apelo fácil.
E aí, depois do recital, ele volta para brincar com o popular. Perlman e De Silva apresentaram quatro breves composições de compositores do século XX – incluindo uma dança espanhola e um tango argentino.
As 1.500 pessoas que lotavam o Municipal se mostravam absolutamente maravilhadas.
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Ir ao concerto de Keith Jarret foi uma ação planejada no longo prazo. Compramos os ingressos com mais de dois meses de antecedência, depois que o Carlos Bêla acionou o alarme de vem aí Keith Jarrett.
Não soube com antecedência do recital de Itzhak Perlman no Municipal. Fiquei sabendo dele pelo Estadão, pouquíssimos dias antes da data marcada. Em cima da hora.
E aqui cabe um parênteses engraçado e simbólico. O Estadão aparece no programa – e na apresentação do espetáculo por um locutor –, como um dos apoiadores do recital de Perlman. A Folha aparece como um dos apoiadores do concerto de Keith Jarrett. Não tem jeito. Estadão, sólido, vetusto, erudito. Folha, marketing do novo, moderno, jazz. Eta nóis. Fecha parênteses.
Um dia antes do recital, Mary pediu um favor ao nosso amigo Antônio Carlos Malufe, figura querida, maravilhosa. Um dos colaboradores do 50 Anos de Textos, embora tenha colaborado muito menos do que eu gostaria, para dizer o mínimo.
Malufinho, como dizem os amigos, ou A.C., como ele preferiria ser chamado, creio eu, nos brindou com dois assentos na platéia. Os mais caros que havia.
Vimos Itzhak Perlman pertíssimo de nós. Podendo acompanhar todas as suas expressões. Estávamos à mesma distância dele no Municipal do que estivemos de Georges Moustaki no Olympia de Paris, em poltronas compradas pela Mary com meio ano de antecedência.
(E, como a vida é feita, entre outras coisas, de coincidências, me lembrei, num dos intervalos do recital de Perlman, que, nos anos 80, na Era Regina Lemos, ela conseguiu para mim, não me lembro mais exatamente como, um convite para ver Moustaki no Municipal de São Paulo, ao fim da entrega do Prêmio Molière. Exigia-se traje de gala, e o mondrongo aqui alugou um smoking para ver Moustaki pela primeira das duas vezes na vida. Como coincidências são coincidências, me lembro agora que a segunda vez que aluguei smoking foi para ir à festa de 15 anos da filha do Malufinho. A terceira e última foi para a festa de formatura da minha filha. Três boas ocasiões. Não haverá uma quarta.)
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A par da maravilhosa música e do virtuose de Itzhak Perlman (e também de Rohan De Silva), nos impressionou a presença majoritária de judeus, nas 1.500 cadeiras do Municipal.
É de Nelson Rodrigues, gozando Otto Lara Rezende, a frase “mineiro só é solidário no câncer”? Talvez seja. Não me lembro. Mas me impressiona como judeu é solidário a judeu – sempre.
Será que se houvesse um muçulmano virtuoso da música erudita, e ele se apresentasse em São Paulo, algo como 80% da platéia seria formada por muçulmanos? Ou um chinês, ou um japonês, ou um coreano, ou africano?
Não imagino que as multidões que lotam os shows de Bob Dylan, Paul Simon, Leonard Cohen, sejam, em sua maior parte, judeus, estando lá porque o artista é judeu.
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Em casa, pensando no recital, ouvindo na cabeça os sons do recital, me lembrei de uma seqüência de um filme que não foi terminado.
O cineasta polonês Andrzej Munk morreu em um acidente enquanto fazia o filme que seria A Passageira / Pasazerka. Era 1961, e o cinema polonês se revelava um dos mais brilhantes do mundo, o mais brilhante de todos os soa países comunistas.
A ação de A Passageira se passava nos dias de hoje, os dias de então, 1961. Numa viagem de navio, uma mulher alemã vê outra mulher, que havia conhecido em um campo de concentração durante a Segunda Guerra.
Assistentes de Andrzej Munk reconstituíram o que teria sido o filme inacabado do cineasta. Pegaram as partes que haviam sido filmadas, juntaram com as anotações de Munk, fotos, e fizeram não exatamente um documentário, mas a reconstituição de um filme que não chegou a ser terminado. Trechos não filmados eram mostrados em fotos, e em narração com voz em off.
Numa sequência apavorante, e lindíssima (que chegou a ser filmada por Munk, e naturalmente é mostrada inteira), uma orquestra formada por prisioneiros de um campo de concentração – sob as ordens dos nazistas – toca um concerto diante de visitantes ilustres, como forma de propaganda, como forma dos torturadores de dizer que aquelas pessoas estavam vivendo em boas condições, tendo até mesmo criado uma orquestra.
A sequência em que um grupo de judeus extremamente mal tratados, subnutridos, pele sobre osso, toca um concerto por obrigação, porque assim determinaram os carrascos, é uma das coisas mais impressionantes que já vi na vida.
Vi o filme que reconstruía o filme de Andrzej Munk não terminou quando tinha 17 anos. Vi junto com meu irmão Geraldo e meu amigo Jorge Teles. Jorge tinha um pequeno gravador com o qual tentava captar a trilha sonora dos filmes. Gravou a música tocada naquela sequência para que pudéssemos depois identificá-la. Era o segundo movimento do concerto para violino número 2 de Bach, BWV 1042. Para mim, até hoje, é uma das melodias mais dolorosas que já foram feitas. Lindíssima, de uma dor profunda.
De alguma maneira, Itzhak Perlman me faz lembrar aquele preso de um campo de concentração nazista na Polônia que é forçado a executar um Bach profundamente triste.
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O programa do recital no Municipal diz que Itzhak Perlman nasceu em Israel em 1945. Isso é novilíngua, é o falseamento total da realidade dos fatos. Israel só passou a existir em 1948. Em 1945, aquele pedaço de terra se chamava Palestina, e era um protetorado britânico.
Fico então pensando na turnê que Marlene Dietrich fez e que incluiu apresentações em Israel, lá pelos anos 1980, se não estou enganado. Marlene havia abandonado sua Alemanha natal quando o nazismo se aproximava do poder. Inscreveu-se no Exército americano e lutou contra o nazismo com suas armas – apresentações, em diversos locais do mundo, para as tropas aliadas. Era um símbolo do anti-nazismo. No entanto, quando estava para se apresentar em Israel, proibiram-na de cantar em alemão!
Não me parece inteligente, sensato, lógico, que uma etnia, seja ela qual for, se arvore a ser pura, diferente das demais, melhor que as demais. Que se feche em copas, que se segregue, em um mundo que afinal é um só.
Tenho profundo horror por supremacistas, supremacismos. Venham de onde vierem.
Aqueles mil e tantos judeus endinheirados de Higienópolis que encheram o Municipal para ouvir o som de um judeu certamente não se deram conta, mas Itzhak Perlman abriu o programa da noite com obra de um austríaco, de língua alemã.
Itzhak Perlman, naturalmente, não tem culpa de nada. Não é responsável pelo fato de tantos judeus irem ouvi-lo mais pelo fato de ele ser judeu do que por qualquer outra coisa.
A arte é sempre maior que as pequenezas das pessoas e grupos.
Outubro de 2012
Não tenho o privilégio de morar na capital econômica, política e cultural do país. Aqui em São Francisco do Sul me contento com a lua cheia, sol e mar.Para aplacar minha sede cultural me valho de “50anosdetextos” e das dicas do meu guru Sérgio Vaz. Esta madrugada se superou e fez texto de mão própria sobre Itzhak Perlman. Confesso também minha ignorância por música clássica, prefiro a popular, que também não entendo mas gosto. Seguindo as dicas do guru escutei duas músicas, “Tema de Cinema Paradiso” e “Tema da Lista de Schindler”,feitas para dois grandes filmes. Meu guru é especialista em cinema e em música popular, me permito segui-lo através da “rede sucial” criada por ele. Aqui nesta pequena cidade me dou ao luxo deste privilégio menor. Valeu a dica, violinos à parte, gostei do judeu israelita, melhor do que o comercial e badalado Andre Rieu.
Muito bem escrito.
Apenas um reparo: Mozart não era Alemão mas sim Austríaco.
Agradeço ao Miltinho e finjo ignorar suas gozações.
Ao José Luís, agradeço pela correção, que já fiz no texto. Sim, claro, Salzburgo é Áustria. Mas veja só, José Luís: segundo a Wikipedia, na época do nascimento de Mozart, Salzburgo pertencia ao Sagrado Império Romano da Nação Alemã.
Tem toda a razão caro Sérgio, o mapa da Europa deu muitas voltas e houve muitas alterações ao londos séculos.
Por acaso o meus País não sofreu grandes modificações desde a consolidação da Reconquista em 1250, sendo considerado o primeiro Estado-nação da Europa.
Muito satisfeito em saber que a “rede sucial” conta com outro português. Minha descendência trasmontana agradece. Ao Sérgio sou a agradecer pelo espaço e ratifico minhas palavras sinceras e transformadas injustamente em gozadoras. Num lugar sem qualquer perspectiva, “50anosdetextos” é minha salvação. Todo dia visito o blog e fico feliz quando Sérgio edita os textos.Leio, comento, participo, replico. Se não me angano “50anosdetextos” vem tendo nova dinâmica, com mais participação dos amigos e colaboradores. Muita informação, boas idéias e opiniões, salvo é claro as terríveis compilações da política econômica. Política e economia não são o forte do meu guru que se vale de textos de autores reacionários. Meus comentários são sérios.