Posso imaginar um reflexivo Passos Coelho a passear numa doce alameda do seu jardim beneditino. E talvez Cavaco tenha um momento de paz entre os canteiros do jardim de buxo de Belém. O poder é solitário, ia jurar.
Confirmei-o em Vida e Destino, romance de Vassili Grossman, ao avistar os passos outonais de Hitler na floresta de Görlitz. Hitler caminha sozinho, num recolhimento monástico, um lirismo de Leonard Cohen, um pé na Polónia, outro na Lituânia. Ele era, ontem, o poder ululante. Hoje, de Estalinegrado, anunciaram-lhe a retirada do seu 6º Exército. Para grandeza da Nova Alemanha, ateou a guerra ao mundo, cremou milhões em fornos crematórios. Agora, os tanques soviéticos abrem-lhe no coração um inferno de gelo e dúvida.
Hitler sabe que atrás das árvores há mil homens invisíveis a protegê-lo, mas caminha sozinho e a floresta húmida acorda nele um sonho aflitivo. Transformou-se no Pequeno Polegar. Esquecido dos mil soldados vigilantes, entre as altas árvores adivinha olhos e dentes de lobo mau prontos a estraçalharem-no. Um terror infantil apodera-se do senhor do mundo.
Em duas páginas, Grossman faz a mais pungente descrição de Hitler que já li. Ia dizer que o cinema nunca lá chegou e dele só nos deu caricaturas. Desminto-me. Numa cena de The Great Ditactor, de Chaplin, a mesma dimensão pueril perpassa terrível e cómica. Um dos ministros, Goebbels, antecipa-o ditador do mundo, adorado como um deus. Hitler ouve-o e amarinha pelos imponentes reposteiros. Segreda-lhe um “fazes-me ter medo de mim mesmo” e, num acesso de Greta Garbo, pede para ficar sozinho. Segue-se um dos mais líricos e sinistros bailados do cinema.
Como Astaire caminhará para Cyd Charise num filme de Minnelli, assim Hitler desliza, sedutor, em direcção a um enorme globo terrestre. Segura-o entre as mãos, fá-lo girar e larga um riso de kindergarten. Mão para mão, o globo cruza os ares, um toque de chulipa atira-o ao tecto. Desce e faz suave ricochete na angélica cabeça de Hitler. Há uma cumplicidade enternecida entre esta Terra que paira e este pequeno filho da puta que afinal é um bailarino.
Hitler deita-se na secretária e deixa que o globo venha bater-lhe nas tensas nádegas que com um golpe o relançam, recortando-o contra os sucedâneos de suásticas na parede. Duas vezes, redondo mundo e redondas nádegas de Hitler celebram uma intimidade inocente. Os olhos de Hitler riem-se e amam. Ninguém teve, com tanto amor, o mundo na palma da mão, na ponta do dedo. Acaba mal: o inflado globo rebenta e um convulso Hitler chora baba e ranho.
O delírio da posse dançado por Chaplin ou o medo de floresta e fadas descrito por Grossman cantam o lado primitivo e infantil do poder. O solitário Hitler? Não haja ilusões, toca a todos.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.