O nosso amigo Valdir Sanches, talvez sem que ele saiba, foi um dos meus professores. Não que eu tenha aprendido muito com ele – não me atrevo a dizer isso, pois ainda me considero aprendiz – mas ele, através de seus textos, me ensinou a conversar com o leitor. Pois o Valdir, já há um bom tempo, vem me cobrando histórias que aconteceram nos bastidores das minhas matérias. Queria que eu as contasse. E eu sempre respondi que não me lembro de história alguma, portanto…
Mas um episódio recente, há alguns dias, na Itália, Toscana, em Cortona, cidade sobre a qual a escritora Frances Mayes escreveu Sob o Sol da Toscana e outros dois livros, curiosamente me fez lembrar de uma situação em Nova York, que não tem nada a ver com matéria alguma, mas estava de alguma maneira ligada ao Jornal da Tarde. Pensei: taí uma história que eu poderia contar.
E então me ocorreram mais duas ou três histórias, estas sim, ligadas a matérias, e aí percebi que poderia contar um pouco daquilo que me pedia o Valdir.
Começo com as histórias ligadas a matérias, e deixo para o final o ocorrido em Cortona, e aviso desde já: não crie falsas expectativas, pois foi algo comum. O uísque, e a idade, agindo em comunhão com o som que estava ouvindo, é que provocaram uma certa emoção.
Vamos a Carrapateira, na Paraíba, que, em 1969, o IBGE divulgou que era a cidade mais pobre do Brasil. O pauteiro e chefe de reportagem do JT, se eu não estiver enganado, era o Moisés Rabinovici. E ele me disse: “Vá para lá e conte pra gente como é a vida na cidade mais pobre do País”.
Fomos, eu e o Barretinho, o Armando Barreto, um dos melhores repórteres fotográficos que a nossa imprensa já teve. Nós chamávamos um ao outro de Xará. O Xará morreu poucos anos depois em um acidente estúpido na Rio-Bahia. Não me lembro de alguns detalhes da nossa viagem, apenas que fomos de avião até João Pessoa e então tivemos que pegar um ônibus (a palavra mais exata é jardineira – jardineira, sim, ônibus é exagero). Então tivemos que pegar uma jardineira para Cajazeiras, a cidade mais próxima de Carrapateira em que poderíamos alugar um táxi.
A viagem na jardineira, para mim, foi inesquecível: ela estava lotada e alguém, de tempo em tempo, soltava um pum, ou seja, gazes. E eles eram de um fedor horroroso, e logo várias pessoas passaram a protestar. Em certo momento um sujeito gritou: “Pede pra pará pra cagá”.
É claro, o culpado não se manifestou, e o suplício continuava. Em um trecho do caminho a jardineira fez uma parada – e ela fazia muitas paradas – e uma freira entrou. Pouco depois, veio aquele cheiro infecto novamente, e o mesmo sujeito voltou a gritar:
– Olha a irmã aí, vamo respeitá.
Em uma das paradas o infeliz desceu, porque o cheiro não voltou. Chegamos a Cajazeiras, alugamos o táxi e, finalmente, ali estava Carrapateira. Não havia hotel algum em que pudéssemos ficar, nem mesmo pensão. Procuramos o prefeito, e este disse que nos hospedaria na casa dele. Levou-nos a um quarto da casa, armou lá duas redes, e pronto. Eu nunca havia dormido em rede antes, portanto passei a maior parte das noites tentando me ajeitar. O Barretinho dormia feito pedra.
Não me lembro quanto tempo passamos lá, provavelmente uns cinco, seis dias. Em uma manhã, decidi fazer algo que não fazia desde moleque: beber leite tirado na hora. Alguém nos levou a um curral, uma vaca estava sendo ordenhada, fiz minha vontade. Segundos depois coloquei tudo pra fora. E passou a ser assim: tudo o que engolia, devolvia.
Bem, não havia o que fazer. Quando terminamos com Carrapateira o Xará sugeriu que fôssemos a São José da Lagoa Tapada, cidade próxima, considerada uma das mais violentas do Nordeste. Fomos, apuramos uma história de um tiroteio por motivos eleitorais em que cinco ou seis pessoas morreram. Claro, tínhamos que ouvir o prefeito. Este nos recebeu na varanda da casa dele e eu o estava entrevistando quando tive que correr para a rua e vomitar. Um vexame.
Bem, nossa missão por lá havia terminado. Na volta, o Barretinho deu um jeito de parar em Salvador, paixão dele, que tinha um tio lá. Foi em Salvador que me vi em um espelho pela primeira vez em uns dez dias. Fiquei impressionado: meus olhos tinham um amarelo intenso, pesado. E o Xará, que me via todos os dias, não havia dito nada. O tio dele me levou a uma médica. Diagnóstico: hepatite. Ela deu-me alguns conselhos sobre alimentação e ficamos nisso.
Estávamos lá quando Fleury matou Marighella em São Paulo. Liguei para a redação e fiz a pergunta que nem deveria ter feito: queriam que eu fizesse alguma coisa ali, cidade em que Marighella nasceu e passou a infância? Claro que queriam. O tio do Barretinho nos levou à vizinhança em que ele viveu, entrevistei algumas pessoas que se lembravam dele quando criança e mandei o texto para o JT. Consegui marcar um encontro com um irmão dele. Deveríamos pegá-lo na manhã seguinte e dar-lhe uma carona até o seu emprego, se não me engano na Petrobrás, onde pediria licença para vir a São Paulo tomar providências. Fizemos isso e, no caminho, conversamos, o Xará o fotografou.
O Jornal da Tarde publicou a história na última página, que naquela época, a dos bons tempos, era a página mais nobre depois da primeira. Liguei para a redação e conversei com o Maurício Kubrusly, que era o coordenador das pautas. Maurício exultava:
– Foi um banho, só nós pegamos o homem. Inclusive o Jornal do Brasil deu em matéria que não o achou porque ele está em viagem pelo interior da Bahia.
Voltamos para São Paulo. Assim que entrei na redação e o Fernando Mitre viu a cor dos meus olhos intimou: “Vá para casa imediatamente e trate disso”.
Acho que foi em casa, em Campinas, que escrevi a matéria sobre Carrapateira e a mandei para o jornal. Quando meus olhos voltaram ao normal e fui para o JT o Barretinho me procurou.
– Xará, o que você fez?
– Como assim?
– Aquilo é literatura, Xará.
Não era. Eu apenas havia contado uma história.
***
Escrevi, no início deste texto, que havia me lembrado de duas ou três histórias que poderia contar. Só que não me ocorre qualquer outra agora. Talvez a memória esteja brincando comigo (e isso é muito provável) ou eu estivesse pensando que Carrapateira e São José da Lagoa Tapada fossem histórias diversas. Não são, a segunda é um apêndice da primeira.
Vou então contar uma história que nada tem a ver comigo, e sim com o Barretinho. Já que ele não está mais aqui, conto eu.
Armando Barreto era um laboratorista do departamento de fotografia da Última Hora, no Rio. E estava lá, laboratoriando, no dia 27 de setembro de 1952, quando um sujeito o procurou e disse que estava chegando de São Paulo, e que havia fotografado um acidente horrível na Dutra, com um carro pegando fogo. Estaria a Última Hora interessada em suas fotos? Barretinho respondeu que não sabia, que teria que fazer uma consulta.
E foi à sala de Samuel Wainer, proprietário e editor do jornal. Samuel disse que não, não se interessava.
Barretinho voltou à fotografia e pouco depois o sujeito foi embora.
Minutos depois, Samuel entrou gritando na sala:
– Cadê o cara? Cadê o cara?
– Foi embora – respondeu o Barretinho, surpreso.
– Eu quero aquelas fotos, eu preciso daquelas fotos!!!
Samuel acabara de ser informado de que Francisco Alves, o “cantor das multidões”, havia morrido naquele acidente.
Bem, Barretinho estava em uma saia justíssima. O tal cara havia deixado o filme com ele, pedindo com muito jeito que o revelasse e fizesse cópias. Ele viria buscá-las mais tarde. E aí? Contar ou não ao Samuel? Afinal, ele estava muito errado ao concordar com o pedido e usar material da Última Hora. Mas decidiu contar.
Um sucesso estrondoso. A Última Hora foi o único jornal que, no mesmo dia, publicou e fez um escarcéu na primeira página com as fotos do acidente em que Chico Alves havia morrido.
No dia seguinte Samuel Wainer decidiu que o Barretinho merecia uma recompensa. Foi até ele e perguntou: “O que é que você quer?”.
E o Barretinho: “Quero ser fotógrafo”.
Começou assim a carreira de um dos nossos mais talentosos repórteres fotográficos.
* **
Bem, passo agora à lembrança que me ocorreu em Cortona. Lá, costumávamos nos sentar em mesinhas de um bar na praça principal. Bar que, como outros lá mesmo, tem um defeito sério: fecha às oito da noite. Naquela noite já passava das oito, e além disso estava chovendo. Fomos então a um outro bar, aberto até bem mais tarde, e nos sentamos em uma sala interna. Pedimos nossos drinques, eu uísque, a Lúcia um bloody-mary. Uísque vai e vem e então o aparelho de som começou a tocar Ray Charles cantando “Somewhere over the rainbow”. Já ouvi essa canção centenas de vezes, mas o uísque entrou em ação e me senti emocionado. E comentei com a Lúcia que, no início de sua carreira, Ray imitava Nat King Cole – temos um CD daquela época.
Isso até que alguém, provavelmente o empresário, disse a ele: “Ray, ninguém precisa de mais um Nat King Cole. Você tem que fazer alguma coisa diferente, tem que cantar como você mesmo”.
– E ele fez isso aí, isso aí – eu disse.
Então me lembrei de uma viagem a Nova York. Eu estava só, sinal de que era um trabalho para o Jornal da Tarde, mas não me recordo qual. Hospedei-me no Park Central Hotel, a duas quadras do Central Park, mas com preços acessíveis. Comprei uma revista, provavelmente a Time Out, para ver o que rolava pela cidade, e vi que, naquela noite, Ray Charles iria cantar no lendário Blue Note, em Greenwich Village.
O hotel tem um serviço à disposição dos hóspedes que providencia entradas para shows, peças na Broadway, óperas… Fui até lá, fui atendido por dois senhores e perguntei se poderiam providenciar um ingresso para o Blue Note. “Claro que sim”, responderam. Pouco mais tarde me procuraram, disseram que estavam tendo dificuldade e perguntaram o que é que estaria acontecendo por lá. Ray Charles, respondi.
– Ray Charles??. Ray Charles no Blue Note???!!! Desculpe, mas não há nada que possamos fazer pelo senhor.
Bem, o jeito é esquecer, pensei. À noite saí e fui para o Village, bebericar. Passei por dois, três bares, comi alguma coisa e então me lembrei do Blue Note. Era ali perto e fui até lá. Havia uma fila, mas não era grande e entrei nela. O detalhe é que alguém só poderia entrar quando alguém saísse, e fiquei tentando entender como é que uma pessoa se dispunha a sair com Ray Charles cantando lá dentro.
Chegou a minha vez, paguei (vinte dólares, se não me engano) e entrei. Era muito difícil se locomover lá dentro. Havia um barzinho na entrada, com um pequeno balcão, e levei alguns minutos para chegar a ele. Depois de mais alguns minutos consegui fincar meu cotovelo no balcão, pedi um uísque.
Ray Charles estava ao piano, cantando, a não mais de cinco metros de mim. Mas eu mal e mal conseguia ver a cabecinha dele. Uma meia hora depois vi um sujeito se levantar de uma mesa – as mesas eram pequenas, redondas, e as pessoas se amontoavam em torno delas. Consegui ir até lá e me sentei. Pedi outro uísque, claro.
E lá estava eu, no Blue Note, com Ray Charles tocando e cantando a três metros de distância.
***
Essa história me fez lembrar uma outra, curtinha, também em Nova York. Naquela vez Lúcia estava comigo, e decidimos ir ouvir Bobby Short no café do Hotel Carlyle. Bobby tinha seu lado João Gilberto. Se ouvisse qualquer barulhinho na platéia parava de cantar e esperava.
Terminado o show nos dirigimos para a saída pela porta da frente do hotel. E então vi Walter Mathau por ali. “Veja Lúcia, é Walter Mathau”.
“É sim, e veja quem está com ele”.
Era Jack Lemmon. Os dois, com as respectivas esposas, esperavam um elevador.
Sempre fui fã de carteirinha de Lemmon e Mathau. E até hoje não me perdôo, nem vou me perdoar nunca, por não ter ido até lá e entrado no mesmo elevador.
Junho de 2012
Em Histórias que os jornais não contam mais, uma coletânea de reportagens de Anélio Barreto.
Anélio, seu texto está delicioso, como sempre. Agora, não sabia que você tinha aderido ao realismo fantástico, como mostra na abertura da escrita, ao se referir a este amigo. Se alguém aprendeu com alguém, fomos todos nós, uns com os outros, na inesquecível academia do mestre Murilo.