São heróis. Voltei a pensar neles enquanto via o último filme de Clint Eastwood, pai e filha. Temos a cabeça e o coração cheios deles. Sabemos bem que não são só nossos, que são heróis do mundo todo, de todo o mundo. Mas acreditamos que é mesmo a “mim” que eles querem e tratam de forma especial. Porque só esse “mim” que os idealiza é que conhece um incerto pormenor íntimo, uma secreta intenção pela qual, sendo heróis do mundo, são acima de tudo privados heróis de “mim”.
Heróis do mundo, heróis de mim, são mãe e pai.
A mãe, Ma Joad, de The Grapes of Wrath que Steinbeck escreveu, mas a que só John Ford deu o tom certo quando a pôs, inteira, no corpo amplo de Jane Darwell. Conhecem a história desses anos de crash (anacrónicos e remotos, não é?!), crise e desemprego: Ma Joad perdeu tudo, empurrada para fora da casa que era dela, restos náufragos de família a caírem-lhe aos pés. E é a luz da mãe Joad, uma luz de primeiro sol da manhã, que a tudo resiste e a todos salva. Ela diz: “We’re the people that live. They can’t wipe us out; they can’t lick us. We’ll go on forever, Pa, ’cause we’re the people.”
Não nos conseguem destruir, jura ela, porque somos o povo que vive. E cada uma das palavras, na boca dela, nos rasga o coração, nos exalta e devasta, nos oferece a coragem de lutar e vencer, por nós e por ela, a mãe de todos os homens, de todas as mulheres, e de mim, senhora minha mãe.
Há um pai, Mr. Morgan, que Donald Crisp incarnou noutro filme de John Ford. Símbolo do mundo de inenarrável harmonia que é o vale verde e galês de How Green Was My Valley, Mr. Morgan é o severo e justo pai de sete filhos, mineiro como mineiros são os filhos logo que podem trabalhar. O ritmo do dia é o ritmo do trabalho, sirenes e sinos, rituais e refeições, num mundo de honra a que preside uma ordem serena e imutável, tão parecida com o feliz mecanismo de um relógio.
Mr. Morgan não está preparado para a avaria desse relógio. Vai acabar arrumado no seu imprestável tempo. O tempo novo, “este tempo”, é de emigração e greves, é tempo dos filhos que criou e duma luta que não compreende. Os filhos partem e Mr. Morgan já não voltará a cortar a carne do saboroso assado da refeição de família. No último jantar em que o vemos, amado ainda pela sombra da mulher, só o pigarrear do minúsculo filho mais novo, sentado na pontinha da grande mesa vazia, tenta acordar nele o orgulho e o respeito passados: “Eu sei que estás aí, meu filho,” diz-lhe Donald Crisp e é uma das frases mais mágicas que o cinema já me fez ouvir. É este o pai, herói tão estrito e tão vulnerável como sempre o são todos os pais, pai de mim também, senhor meu pai.
São, mãe e pai, os heróis mais amados. Mulheres e homens assim, nunca morrem.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Manuel utiliza o cinema para descrever a realidade. Da mesma maneira que seu compatriota Mario Murtera que utiliza o clássico “Sunsete Boulevard” de Billy Wilder para traçar um paralelo com a atual crise econômica portuguêsa. O professor defende que alem da realidade econômica existe uma depressão psicológica associada.
“A actriz Gloria Swanson, e a sua personagem Norma Desmond, viveram profundas depressões, em vidas intensas e atribuladas- O que foi a «realidade» para Gloria ou para Norma? Algo certamente de profundamente subjectivo e, no fim de contas, incomunicável”.
Assim se expressa o professor Mário Murtera:
“Afinal, é bom reconhecê-lo: a chamada «realidade» só existe na nossa imaginação, ou na nossa ideologia, no sentido de particular visão do mundo. Mas essa ideologia, que se exprime a nível individual, também é fruto de grandes movimentos, vagas ou «ciclos» ideológicos. Por exemplo, Portugal vive hoje um tempo de depressão psicológica, que se associa – mas não se reduz – a uma depressão económica As nossas doenças, como economia e como sociedade, começam por uma doentia visão do (nosso) mundo. Visão a que chamo ideologia portuguesa.
Quero simplesmente dizer com isto que, se pretendemos melhorar a lusa realidade, temos antes do mais, de mudar de óculos… ou ideologia.
Recapitulemos”.
Minhas saudações ao Manuel, sempre lido e sempre lembrado.
A comparação é bastante flattering para o meu ego. Fico-lhe grato.