E um dia comem-nos

Era em Luanda e tinham nos olhos um abor­re­ci­mento escan­di­navo. No meu Liceu, que agora se chama Mutu Ya Kevela, havia jaca­rés. Nada­vam num tan­que fundo e tinham uns bons metros de areia para se aque­ce­rem ao céu aberto do pátio. Uma rede protegia-os da cana­lha que se pas­se­ava em cal­ções e os pro­vo­cava com as mais sór­di­das judiarias.

Os jaca­rés do Liceu olhavam-nos com um misto de des­dém e teo­ló­gica indi­fe­rença tal­vez pro­vo­cado pelos claus­tros con­ven­tu­ais, pela insó­lita azu­le­ja­ria por­tu­guesa que fais­cava ao sol tro­pi­cal. E houve uma altura em que se dese­nhou uma cons­pi­ra­ção na minha lamen­tá­vel cabeça ado­les­cente: jurei ter visto um laivo de ódio, uma pro­messa de vin­gança, nos olhos dos jacarés.

Por essa altura, vira a pri­meira jiboia. Dez metros sóli­dos, cilín­dri­cos, mor­tos, com que os caça­do­res do meu bairro enfei­ta­vam triun­fal­mente um jipe. Cor­re­mos todos a tocar-lhe: nunca senti tanto gelo, um friís­simo corte epis­te­mo­ló­gico. Aquilo era um frio de outro mundo, de tirar a mão de cima de tanto ódio. Perdi a pere­grina ideia de uma Natu­reza pacífica.

Agora tinha a cer­teza: os meus ascé­ti­cos jaca­rés dis­far­ça­vam no olhar resig­nado a von­tade de um ata­que assas­sino. Decidi que havia entre todos os jaca­rés do mundo uma mís­tica comu­ni­ca­ção uni­ver­sal e que no rio Cuanza uma mul­ti­dão rep­ti­lí­nea escon­dia nas hera­cli­ti­a­nas águas a revolta, a sede do san­gue humano, de pre­fe­rên­cia o dos alu­nos do Liceu.

Esses esque­le­tos colo­ni­ais recordei-os vendo Indi­ana Jones and the Tem­ple of Doom. Estão a ver Har­ri­son Ford, a hiper­bó­lica (pelo menos em cer­tos pon­tos) Kate Capshaw e o pres­ci­ente miúdo chi­nês na ponte de cor­das, com os ini­mi­gos a morderem-lhes as cane­las? Ford decide que só se sal­vam cor­tando a ponte e lan­çando os iní­quos per­se­gui­do­res ao rio. Lá em baixo, as obs­ce­nas man­dí­bu­las rou­ca­mente aber­tas ao fes­tim tão espe­rado, está toda a cro­cody­lia do mundo incluindo os jaca­rés do meu liceu.

Esse vibrante ódio ao humano, a mesma raiva de jacaré, anima o urso de The Edge. Três homens caí­ram de um desam­pa­rado avião no seu ter­ri­tó­rio. Indi­fe­rente aos con­fli­tos deles, à morna inti­mi­dade do corpo de Elle Macpher­son pela qual Anthony Hop­kins e Alec Baldwin esta­riam dis­pos­tos a trucidar-se, ao urso move-o um ódio ances­tral, nu de ten­ta­ções meta­fí­si­cas. Quer matá-los, estalar-lhes os ossos, rasgar-lhes os teci­dos, os mús­cu­los, por­que para a Natu­reza o assas­si­nato de um homem não é crime nenhum.

Pás­sa­ros de Hit­ch­cock, ara­nhas, ana­conda e tuba­rões, pira­nhas, as san­gues­su­gas de Stand By Me, o cão branco de Ful­ler, os lobos de Liam Nee­son, o tigre na flo­resta apo­ca­líp­tica de Cop­pola mos­tram que a rigo­rosa inte­li­gên­cia da Natu­reza gosta de san­gue humano: sabo­roso ape­ri­tivo para um ameno fim de tarde.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

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