A visita do mal

“Mas quando chegamos lá – eu não

quis ir em frente. E entrar na casa. Fiquei

com medo, e não sei por que, pois

nunca me ocorreu –, bem, uma coisa

 assim nunca tinha ocorrido a ninguém”.

(A Sangue Frio, Truman Capote)

 Cem anos atrás, em 1912, a pequena cidade de Villisca, no Iowa, área central dos Estados Unidos, florescia. Suas ruas tinham inúmeras lojas em franco progresso, vários restaurantes e um teatro. Muitos trens – a única forma de acesso à cidade – ali chegavam diariamente. Villisca, segundo seus habitantes, quer dizer “lugar bonito” ou “linda vista”. No início da noite de 9 de junho, um domingo, o senhor Josiah Moore, 43 anos, e sua esposa, Sarah, 39, acompanhados dos filhos Herman, 11, Katherine, 10, Boyd, 7, e Paul, 5, além das convidadas Ina, 8, e Lena Stillinger, 12, rumaram para a igreja presbiteriana para uma cerimônia do Dia da Criança.

 Às seis horas daquela tarde o sr. Josiah, ou Joe, havia telefonado para a casa dos Stillinger. Blanche, a filha mais velha da família, atendeu. Ele pediu para falar com a mãe dela.

 “Ela saiu, senhor Moore”.

“Veja, nós vamos à igreja esta noite, levando suas irmãs, e elas estão com medo de voltar para casa depois de escurecer. Será que haveria problema se elas passassem a noite aqui?”

“Não, não creio que haja problema”.

Os garotos Moore e Stillinger cantaram, dançaram e brincaram a valer. Felizes, voltaram todos para a casa dos Moore entre 21h45 e 22 horas.

Foi a última vez em que foram vistos com vida.

 * * *

 Villisca teve 1.252 habitantes contados no censo de 2010. Esse número vem caindo. Em 2000 eles eram 1.344 e, em 1912 – ano provável de sua maior população – 2.500. Tipicamente rural, a partir das mudanças na agricultura industrial e na administração de fazendas, o Iowa estava se transformando e, à medida em que os negócios da agricultura fechavam, o mesmo acontecia com seus fornecedores, o que era inevitável. Mas Villisca, como está dito no site oficial da cidade, continua um centro ligado aos negócios com a terra.

O que não impede que profissionais de serviços como encanamento, aquecimento, oficinas de automóveis, mercearias, farmácias, restaurantes e bares lá tenham se estabelecido, como em qualquer outra comunidade.


Em Villisca, a casa dos Moore, construída no lote 310 em 1868 pelo sr. George Loomis, foi comprada por Josiah em 1903. Depois da morte da família, o sr. J. H. Geesman a comprou em 1915. Desde então teve vários proprietários, correu o risco de ser demolida até que, em 1994, foi oferecida ao sr. Darwin Linn, diretor e proprietário de um museu, o Olson-Linn Museum, no centro da cidade. Fechado o negócio, o sr. Linn levou alguns meses até criar coragem para contar à sua mulher, Martha. Quando ela se recuperou do choque, o casal decidiu obter fundos para uma restauração que a deixasse como era naquela noite de 9 para 10 de junho de 1912. Hoje, a casa dos Moore é um pequeno museu.

Estranho

Mas naquela manhã de segunda-feira, cem anos atrás, a vizinha, sra. Mary Peckham, saiu para pendurar roupas no varal e estranhou quando não viu movimento na casa ao lado. O sr. Moore costumava sair cedo para o trabalho, Sarah levantava-se ao amanhecer para preparar o breakfast e, com quatro crianças, havia sempre muito barulho. Não é o que estava acontecendo. Mary foi lá e bateu na porta. Como não houve resposta, tentou abri-la, mas estava trancada. Ela foi ao chiqueiro e soltou as galinhas – era uma maneira de ajudar Sarah. Voltou então para suas roupas. Pouco depois, ainda incomodada com aquele silêncio, ligou para Ross Moore, irmão de Josiah. Ele veio, bateu na porta, gritou e, sem resposta, usou sua cópia da chave e entrou. Foi para o quarto de hóspedes, ao lado da sala de visitas, e encontrou, em meio a muito sangue, os corpos de Ina e Lena Stillinger. Ele saiu e imediatamente ligou para John Henry “Hank” Horton, o policial de plantão. Horton entrou na casa e viu que as duas garotas Stillinger haviam sido agredidas até a morte com um machado. A arma do crime, que era de Josiah, foi encontrada ali ao lado, com muito sangue, encostada em uma parede. As meninas só puderam ser identificadas porque seus nomes estavam em suas bíblias. Lena tinha um arranhão em um dos braços, sinal de que tentara resistir ao seu atacante. Sua camisola estava levantada e ela não tinha calcinha – é provável que tenha sido abusada sexualmente.

Um detalhe: o espelho do quarto estava coberto. Tratava-se de uma superstição comum naquele tempo, a de que, quando alguém morria, todos os espelhos tinham que ser cobertos, pois a alma do morto poderia ficar aprisionada neles.

O policial Horton sabia que já não havia esperança de que a família Moore estivesse viva. Ele subiu ao primeiro andar e entrou no quarto do casal. Dois corpos jaziam na cama, cobertos com um lençol, as paredes vermelhas de sangue. Eram Joe e Sarah Moore. Joe foi o mais agredido: sua cabeça estava tão desfigurada que os olhos saltaram das órbitas. Ao lado da cama havia um castiçal de querosene, mas estava apagado. Horton foi para o quarto vizinho, e o que viu fez com que ele, velho e experiente policial, caísse de joelhos. Quatro crianças pequenas, cobertas com lençóis ensopados de sangue, e sangue em todas as paredes.

Horton chamou então o patologista, Dr. J. Clark Cooper e divulgou, por telefone e telégrafo, as primeiras informações sobre os crimes. O dr. Cooper estimou que as vítimas estavam mortas há cinco ou seis horas.

O The New York Times do dia seguinte noticiou os acontecimentos de Villisca e seu enviado especial dizia que a única pista eram impressões digitais com sangue em várias partes da casa. Isso parece pouco provável e pode ter sido dito ali, na agitação da descoberta. Porque, assim que a notícia se espalhou, amigos da família, vizinhos e curiosos se juntaram na frente da casa e os poucos policiais presentes não conseguiram contê-los. Entraram, percorreram todos os quartos, toda a casa, tocaram em tudo, alguns se apropriaram de objetos para guardar como lembrança e, enfim, destruíram qualquer pista que possa ter sido deixada. Foi preciso chamar a Guarda Nacional para tirá-los de lá.

Parece evidente que o principal alvo do massacre era o sr. Moore, pois a violência contra ele – se é que se pode dizer isso – foi muito maior do que contra os outros. Os outros, bem, os outros podem ter sido mortos por estarem no lugar errado. E foi feita a pergunta: por quê?

(Na foto, Josiah, Herman, Katherine e Sara Moore.)

Frank Jones

Surgiu o primeiro suspeito, um destacado cidadão de Villisca, o senador Frank F. Jones. Não que ele tivesse agido diretamente, e sim contratado alguém para a execução. O sr. Moore nasceu no estado de Nova York em 1855 e sua família mudou-se para o Iowa estabelecendo-seem The Forks, que depois teve o nome mudado para Villisca. Ele foi professor, mas seu interesse por negócios o tornou sócio e depois proprietário de uma loja de produtos agrícolas. O sucesso da The Jones Store o levou, com vários sócios, a fundar o Vallisca National Bank. Em 1898 construiu a maior casa da cidade e pouco mais tarde sentiu apelos da política. Sete anos depois foi eleito senador. Ele e o sr. Moore trabalharam juntos durante nove anos na The Jones Store. Um belo dia Moore decidiu sair, abriu sua própria loja no outro lado da rua, e o que foi pior: levou com ele a lucrativa franchise John Deere, uma cadeia especializada em implementos agrícolas. Jones, o homem mais poderoso da cidade na época, considerou isso uma traição. Havia ainda um agravante: a cunhada dele estaria tendo um caso com o sr. Moore. Era um boato, e embora não houvesse provas, isso enraivecia o sr. Jones e o irmão dele, Albert. Mas não consta que a polícia tenha tido coragem sequer para interrogar o senador. Acusado, ele processou seu acusador, mas perdeu a causa.

Enquanto isso, o condado de Montgomery, ao qual Villisca pertence, cidadãos da cidade e comunidades vizinhas juntaram-se e ofereceram uma recompensa de US$ 3.500,00 pela prisão e condenação do assassino.

Mansfield

Depois que a recompensa foi anunciada, vários detetives, oficiais, particulares e amadores, se dedicaram à caçada. A Burns Detective Agency, de Kansas City, colocou em campo seu principal sherlock: James Newton Wilkerson. Que logo apontou o dedo para o sr. Jones e o irmão, Albert, e anunciou o nome do homem que teria sido contratado por eles: William Mansfield. Mansfield era de Blue Island, Illinois, e, segundo Wilkerson, usava também os nomes George Worley e Jack Turnbaugh. Ainda segundo Wilkerson, Mansfield seria viciado em cocaína e teria se tornado um serial killer, um assassino serial, expressão que ainda não era usada na época. Mansfield teria matado a mulher dele, filho, padrasto e a mãe em julho de 1914,em Blue Island, dois anos após a morte dos Moore. E o acusou também dos assassinatos em Paola, Kansas, quatro dias antes de Villisca, e outros dois em Aurora, Colorado.

Wilkerson disse que poderia provar que Mansfield estava em todos esses lugares quando os crimes ocorreram. Detalhe: em todos eles as vítimas estavam dormindo, foram mortas com machado, havia um castiçal de querosene ao lado das camas, os espelhos estavam cobertos. E o assassino usou luvas, o que, para o detetive, era mais uma prova, pois Mansfield sabia que suas digitais estavam gravadas no presídio militar de Fort Leavenworth, Kansas, onde estivera passando uma temporada.

Com isso Wilkerson conseguiu que o Grande Júri de Montgomery mandasse prendê-loem Kansas City.Osr. R. H. Thorpe, dono de um restaurante no Parque Nacional de Shenandoah, a pouco mais de100 quilômetrosde Washington, depôs dizendo tê-lo visto embarcando em um trem em Clarinda, próxima a Villisca, na manhã seguinte aos crimes. Mas Mansfield tinha um álibi e o apresentou: uma folha de pagamento que o colocava em Illinois quando os Moore e as garotas Stillinger foram mortos. Ele foi dispensado.

Kelly

O reverendo George Kelly e sua mulher assentaram-se em Macedonia, Iowa, depois de anos pregando por cidades do Meio-Oeste. Mas ele continuou sua carreira de pregador itinerante e estava na celebração do Dia da Criança, em Villisca, na noite de 9 de junho de 1912. Deixou a cidade nas primeiras horas do dia 10, o que automaticamente o tornou suspeito. Kelly tinha orelhas salientes, nariz pontudo, testa alta e lábios grossos que, mesmo quando estava sorrindo, pareciam caídos nos lados. Falava tão rápido, quando inflamado, que poucos entendiam o que estava dizendo, enquanto eram atingidos pelos seus perdigotos.

Os indícios contra ele: no trem, de volta a Macedonia, conversou sobre os crimes com outros passageiros, mas os crimes, mesmo, ainda não haviam sido divulgados. E Kelly praticamente confessou, dizendo – o que foi ouvido por várias pessoas – que matou porque teve uma visão que disse a ele “mate, e mate completamente”, uma frase que alegou vir da Bíblia. Apurou-se também que ele enviou uma camisa manchada de sangue para uma lavanderiaem Council Bluffs, Yowa, mas essa camisa não foi encontrada.

Obcecado pelos crimes, escreveu várias cartas para autoridades comentando as mortes dos Moore/Stillinger, com detalhes que, segundo a polícia, só o assassino poderia conhecer. Preso, foi levado à corteem Montgomery. Lá, fez um depoimento incoerente sobre sua confissão, o que muitos consideraram zombaria. Um primeiro julgamento teve falhas, e ele foi anulado. Em um segundo, foi inocentado.

Pedófilo, George Kelly foi preso em 1914, não pelos crimes, mas por mandar cartas obscenas para uma garota. Foi para um hospital de doentes mentais em Washington.

Sawyer

Entre os vários marginais que eventualmente tiveram seus nomes ligados ao crime estava Andy Sawyer, que trabalhava em uma estrada de ferro na época. Seu chefe o denunciou porque, em conversas, ele parecia saber mais do que deveria sobre os crimes. Além disso, dormia e tinha longos bate-papos com seu machado.

Kelly estava em Osceola, Iowa, em 9 de junho. Mas o xerife o prendeu por vadiagem e o colocou em um trem às 11 da noite. Muitos disseram que ele poderia ter ido a Villisca, mas logo o esqueceram.

Moore

O mais forte suspeito dos oito assassinatos em Villisca foi um sujeito chamado Henry Moore (nenhuma relação com a família). Moore foi julgado e condenado a prisão perpétua em dezembro de 1912 pela morte de sua mãe e de sua avó. Foi em Columbia, Missouri, e as duas mortes aconteceram exatamente da mesma maneira que as outras,em junho. Moorefoi cumprir pena na prisão de Fort Leavenworth, que tinha como diretor o pai de um agente federal, M. W. McClaughry. O sr. McClaughry, ao saber o motivo da prisão de Moore, imediatamente avisou o filho. A polícia do Iowa havia pedido a ajuda dos federais, e mais este sherlock entrou em ação.

Em suas investigações, o agente fez um relatório impressionante. Além dos Moore/Stillinger, ele descobriu uma onda de crimes cometidos com machados que durou 18 meses. Em setembro de 1911,em Colorado Springs, Colorado, foram mortos o sr. H. C. Wayne, sua mulher e filho, e a senhora A. J. Burnham e seus dois filhos. Um mês depois, em Monmouth, Illinois, foi a família Dewson, e após pouco mais de uma semana os cinco membros da família de um showman em Ellsworth, Kansas. Em 5 de junho de 1912, dias antes de Villisca, o sr. Rollin Hudson e sua mulher foram mortos em Paola, Kansas.

Investigando todos os casos, e depois de entrevistar Henry Moore na prisão algumas vezes, McClaughry anunciou, em 9 de maio de 1913, que estavam resolvidos 23 assassinatos no  Meio-Oeste americano.

Inexplicavelmente, a polícia do Iowa não deu atenção a ele. Muitos continuaram a acreditar que o assassino era o reverendo George Kelly – afinal, o homem havia feito uma confissão naquele trem.

Oficialmente o assassino de Villisca nunca foi encontrado. Os US$ 3.500,00 da recompensa foram usados em lápides para os mortos.

Há pouco tempo os diretores do museu em que se tornou a casa decidiram permitir que pessoas interessadas passassem a noite lá. Muita gente se apresentou, incluindo adeptos de atividades paranormais. Estes todos garantiram que, na madrugada, ouviram gritos de uma criança. Para eles uma prova de que, entre os mortos, alguém se recusa a sair dali.

Quer se acredite ou não, a verdade é que – como diria Tess Gerritsen, autora de romances policiais de muito sucesso nos EUA – o mal fez uma visita à casa dos Moore naquela noite.

Esta reportagem foi originalmente publicada na Folha de S. Paulo, em 20/10/2012.

Fontes: The New York Times, o site Villisca Axe Murder House, e outros sites, principalmente o American Hauntings.

Em Histórias que os jornais não contam mais, uma coletânea de reportagens de Anélio Barreto. 

3 Comentários para “A visita do mal”

  1. Algo me diz que existe algum erro na cronologia dos fatos. Henry Moore condenado em dezembro de 1912, pelos assinatos da família Dewson em outubro de 2011, e pouco mais de uma semana cinco membros de família em Elisworth-Kansas.
    Em 5 de junho de 2012, dias antes (????) de Villisca, o sr. Rollin Hudson e sua mulher foram mortos em Paola, Kansas.
    O TEXTO é impressionante pela frieza dos assassinatos cometidos o que torna a cronologia irrelevante.

  2. Estou estupefacto com este comentário; então
    o Henry Moore foi condenado em 2012???!!! E pelos assassinatos cometidos em 2011???!!!
    E Rollin Hudson e mulher mortos em 2012???!!!
    Extrordinário!!!

  3. Agradeço ao Miltinho e ao José Luís por chamarem a atenção para este descuido. Naturalmente, onde estava antes 2012, o correto era 1912. E onde estava 2011, o correto é 1911. Falha nossa, que, graças ao olhar atentos de vocês, já foi consertada.

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