A realidade inspira a arte. Os excessos de realidade bloqueiam-na. Hoje, a implacável realidade, uma equívoca bandeira, a baleia do desemprego, constrangem a criatividade. Livros e filmes nascem de pequenas pinceladas de realidade, não de uma realidade ciclónica que os afogue.
Thomas Mann escreveu Morte em Veneza servindo-se do compositor Mahler para modelo do seu ascético herói. A mulher de Mann acrescenta que a impressão causada por um rapazinho de 13 anos, “tremendamente atractivo”, para que o marido não deixava de olhar, terá sido outra realíssima razão. Foi nesse toque de realidade que Luchino Visconti se louvou, na adaptação ao cinema. Varreu meia Europa à procura de meninos de ar seráfico até encontrar o loirinho sueco que incarnou Tadzio.
A vida real de Björn Andrésen, o menino sueco, ícone no filme de uma homossexualidade angélica, não aguentou esse admirável excesso de arte. Não era homossexual e odiou que Visconti o tivesse levado a bares gays onde uns adultos lúbricos o olhavam como se ele fosse um bife tártaro. Andrésen passou a vida a fugir a papéis similares e a esconder-se, em filmes débeis, do sucesso de uma obra-prima. Uma árdua caminhada para a solidão.
Lê-se o Last Tycoon e não passa pela mente de ninguém que o protagonista tenha saído armado da cabeça demiúrgica de Scott Fitzgerald. Monroe Stahr, o herói, é a literária cara chapada de Irving Thalberg, o mais poderoso dos produtores de Hollywood dos anos 20 e 30, bem casado com a actriz Norma Shearer. Fitzgerald morreu antes de acabar o romance, tal como o inspirador Thalberg morreu prematuramente antes de ser deglutido pela avassaladora glória. Elia Kazan, que adaptou o livro ao cinema, falhou a simbólica coincidência. Talvez esta pincelada de real, a sensação de capela inacabada, fosse mais eficaz do que o retrato panorâmico da idade de ouro de Hollywood a que, no filme, De Niro preside.
A realidade também peca por excesso de imaginação. Herman Melville percebeu a armadilha. O Capitão Ahab do seu genial Moby Dick foi decalcado dos tormentos de um marinheiro de carne e osso. Uma baleia afundou o barco de Owen Chase e ele andou 91 dias à deriva num bote, alimentando-se do cadáver de um companheiro. Melville prescindiu de pormenor pantagruélico. No filme, ao pôr Gregory Peck no papel de Ahab, John Huston fez uma escolha artística gourmet e esvaziou a sua leal adaptação do livro.
A realidade é pantagruélica. A Moby Dick atirou o colossal peso contra o bote tem-te-não-caias a que chamamos Portugal. Gregory Peck não é decididamente o Capitão Ahab de que precisávamos e, como a Björn Andrésen, deram-nos um protagonismo que não queríamos. Espera-nos uma árdua caminhada para a solidão. Talvez o romancista que nos escreve morra e deixe a capela inacabada.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Manuel usa três grandes e clássicos filmes para falar da realidade em Portugal.Thomas Mann, Scott Fitzgerald e Herman Melville buscaram inspiração na realidade para realizar suas ficções. Os diretores Luchino Visconti , Elia Kazan e John Huston inversamente procuraram artistas reais que pudessem estampar realidade dos personagens. A realidade em Portugal, bem sabe o Manuel apesar de representar descomunal ficção, não quedará inacabada.Resta escolher bons atores e diretores. Sadações trasmontanas.