Camisa e cuecas, sozinho no meio da sala, Tom Cruise, teenager inconsciente, dança o Old Time Rock n’ Roll. O filme é Risky Business que desdenhei nos idos de 80, antes dos intelectuais de Los Angeles (há intelectuais em LA!) me provarem o valor geracional da coisa.
Também eu fiquei sozinho no meio da sala. A loira, a Sabrina dos meus 17 anos, lá ia nos braços betinhos de um copo-de-leite da Baixa de Luanda, ao embalo do “Corina, Corina” dos Steppenwolf. Mais do que a pessoal e rasteira decepção física, foi uma clamorosa derrota que o meu bairro, a Vila Alice, jamais me perdoou.
Tarde e más horas, o cinema deu-me lição para o que a vida roubara. A verdadeira Sabrina, morena no filme do vicentino Billy Wilder, era Audrey Hepburn, filha de um motorista, pau de virar tripas que é mandada cultivar-se a Paris. Volta e põe os olhos do filho do patrão milionário em bico. Mas há o outro filho, o que sabe em que galho cada macaco deve estar. Para ele o galho de Hepburn não é, de certeza, o colo off-shore do maninho.
O mano de corpo jovial é William Holden. O sorumbático e classista é Humphrey Bogart. Para prevenir o terramoto do sólido capital acumulado, Bogart joga sujo. Lição: se for preciso, e é preciso, jogue sujo.
Há um baile em curso. Holden já seduziu a gentil Sabrina, marcando-lhe – isn’t it romantic –, encontro no court de ténis, onde chega a música, mas não os olhares do irmão. Na mão de Holden o champagne e duas flûtes que esconde nos bolsos traseiros das calças. É então que Bogart e o pai o interceptam. O pai descompõe-no. Bogart que já lhe viu o volume dos copos nas calças, com um meloso enleio, faz com que o mano alegre se distraia e sente. As flûtes estalam em mil vidrinhos que se enfiam nas milionárias nádegas da personagem de Holden.
Tom Cruise sim, mas Bogart nunca deixaria uma senhora sozinha no meio da sala. Duas flûtes a pairar à frente dele, vai ter com Sabrina. Quer dar-lhe uma lição. Mas o cinema não é a vida e a doce Sabrina, a suave pele que na valsa a dele afaga, o roço de seda do vestido nas ásperas calças, desengomam o reaccionarismo social e físico de Bogart. Apaixonam-se. Nem mesmo o cínico Billy Wilder, o realizador, resistiria a um final feliz.
Lição aprendida, reconcilio Luanda e a loira com outro filme. Sonho-me, com mais dois bons palmos, Robert Redford em The Horse Whisperer, quando, num baile country, ele aperta nos braços Kirstin Scott Thomas. Não é ele, sou eu que a danço, e é o triunfo da découpage clássica. Nada de planos sequência, só grandes planos e montagem: a mão corre ao longo da espinha, entrelaçam-se dedos, arde a face na face, cruzam-se pernas, fecham-se os olhos. Canta-se “A soft place to fall”. O country não faz o meu género, mas pior estão as picotadas nádegas do betinho da Baixa de Luanda.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
msfonseca@netcabo.pt
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia
Risky Business, no Brasil Negócio Arriscado; The Horse Whisperer, no Brasil O Encantador do Cavalos.