O excesso de teoria enjoa e mata. Não gosto da escrita sobre cinema que pareça um peru emproado. Prefiro o peru bêbado.
Nunca serei devoto da prosa escolástica de André Bazin ou do sucedâneo Serge Daney. Os filmes ficam apertados num espartilho, mais apertados do que Vivien Leigh no corpete com que a criada lhe esmaga as costelas em Gone With the Wind. E quando se vai a ver até parece que já é mais importante o espartilho do que o corpinho que está lá dentro. Mil vezes a apaixonada e sedutora emoção do americano João Bénard ou a delirante liberdade ficcional da cabeça inglesa de David Thomson, para falar de dois dos meus escritores favoritos de filmes, actrizes e realizadores.
Bénard e Thomson escrevem textos conversados com a realidade do cinema, com o que se passa no ecrã e com o que se passou fora dele. Qualquer deles podia ter contado a história do encontro de Spielberg e John Ford.
Andava Spielberg a fazer o desmame da escola secundária, sonhando ser realizador de cinema, quando alguém lhe arranjou um encontro com Ford. A secretária mandou-o sentar e esperar. Ford tinha ido almoçar e estava a chegar. Quarenta minutos depois, o velho realizador irrompeu imponente, a cara coberta de marcas de batôn que a secretária se apressou a limpar com lenços de papel, o abismado miúdo Steven com os seus sonhos enfiados entre o rabo e a cadeira.
Ford mandou-o entrar: “Então, queres ser um picture maker?” Não se sabe se Spielberg abanou a cabeça. “O que é que sabes de arte?” Nessa altura já Spielberg nem cabeça tinha para abanar. O velho apontou um quadro na parede e trovejou ao miúdo: “O que é que vês ali?” Spielberg começou a falar dos índios que lá estavam. Ford interrompeu-o aos gritos: “Não, não, onde é que está a linha de horizonte?” Em cima, disse o balbuciante dedo de Spielberg. “Ok. E o que vês no quadro ao lado?” Spielberg voltou a falar de cavaleiros, mas Ford explodiu: “Não, não, não, onde é que está o horizonte?” Em baixo, sussurrou o jovem aprendiz. Ford olhou-o nos olhos e deu-lhe um conselho ameaçador: “Se nunca puseres a linha de horizonte a meio do quadro e se fores capaz de sentir porque é que o colocaste bem em cima ou bem em baixo talvez possas ser um bom picture maker. E agora, get the fuck out of here.”
A história do cinema foi feita por mil marcas de bâton que nunca veremos, alimentada pelos sonhos de miúdos ainda com fraldas e pela voz de Júpiter de velhos patriarcas. Uma multidão de episódios que se recorta contra a altíssima linha de horizonte que namora a eternidade ou esse baixíssimo horizonte que nos atira para abismos convulsivos e infernais.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.