Todo o cientista é um cineasta frustrado. Sobretudo os físicos do CERN que andam agora a fazer a repérage de Deus. O cinema também não se cansa de O procurar. No cinema americano das últimas décadas, com ressonância cósmica, o Kubrick do 2001, a Space Odissey e o Malick de A Tree of Life foram dos poucos que roçaram um dedo pela Sua face etérea.
Os cineastas europeus levam-lhes grande vantagem. De Dreyer a Godard, do Dies Irae a Je vous Salue Marie, os europeus estão conscientes de que Deus é uma sublime e terrível criação do homem. Por isso, não procuram no luminoso cosmos o Deus que perderam na cozinha escura.
Deus é um assunto doméstico. Ao criar Deus, o homem conferiu-Lhe atributos essenciais: a omnipotência, a omnisciência, a eternidade. Mas para que essa humana biografia de Deus seja consistente, os atributos divinos têm de resistir ao exame da lógica e ao desafio infame do paradoxo. Ora, feito o exame, é notório que exagerámos largamente um dos atributos, o da Sua omnipotência.
Por exemplo, Deus não pode matar-se. Qualquer homem pode suicidar-se. Basta querer e reunir os meios. Deus não. A arbitrariedade do gesto negaria a Sua eternidade. Diria que o Deus de Bergman, o Deus de O Sétimo Selo se torce, convulso, nesse dilema. O Deus de Bergman, essa Morte que não morre, não se pode matar porque o pecado Lhe é interdito. Fomos mesquinhos ao criá-Lo sem Lhe dar a suicidária autonomia, e ainda O humilhámos mais ao autorizarmo-nos a prerrogativa de O matarmos nós – um alemão, Friedrich Nietzsche, foi o Seu mais patético e minucioso executor, no final do século XIX.
Mas há outra impotência a atravessar-se na omnipotência divina. Deus não pode fazer que quem já viveu não tenha vivido, não pode apagar o que aconteceu. Estaline ou Mao-Tsé-Tung, a coberto da espúria liberdade do relativismo, deleitaram-se com a manipulação do passado, apagando vidas e reescrevendo a história. É um poder reservado aos humanos. Deus está, nesse aspecto, de mãos atadas: negar existência ao que existiu seria mentir, e Deus, por razões lógicas, metafísicas e éticas, não tem a mentira entre as Suas competências, nem mesmo por omissão. O dinamarquês Dreyer e o português Oliveira tentaram iludir esse preceito fundador, instaurando a possibilidade do milagre, um ressuscitando a mãe morta em Ordet, o outro fazendo Benilde conceber sem pecado em Benilde, ou a Virgem Mãe. São, obviamente, dois apóstatas.
Outro herético, Tarkovsky, em O Sacrifício, inventou o medo e a oração, ínvia maneira de nos dizer que Deus foi uma atormentada dúvida nascida em noite de insónia. Temendo a nossa própria criação, vingámo-nos oferecendo-Lhe a eternidade para que Ele a viva, segundo a segundo, como um infinito pesadelo.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
E se Deus não criou a pedra impossível de ser erguida. Deus nâo é onipotente. Se nem todo o poder Deus possui, exageramos na sua crença.