Há filmes que ainda não existem, mas que se está mesmo a ver que serão filmes um dia. Mais tarde do que cedo, receio. Antecipo um.
“Léah” é, por enquanto e apenas, um belíssimo conto. Escreveu-o o hoje quase ignorado José Rodrigues Miguéis, que andou “clandestino” pela Europa, e se auto-exilou na América, onde acabou por morrer, longe da ditosa pátria que a ele a ditadura tornara desamada.
São só 28 páginas passadas no interior de uma pensão de Bruxelas que tinha “o que quer que fosse de decadente, descuidado e boémio.”
O narrador, voz apática, de olhar distraído e ânimo sufocado, é surpreendido por um rosto, um corpo, uma mulher: Léah, a criada que poderia ter sido Juliette Binoche há 20 anos.
De Léah, o leitor quase nada sabe. Apanha-lhe o rumor de um riso, farrapos de conversas a meia voz, o nome chamado do escuro por outros hóspedes. Silêncios suspeitos às vezes.
Já vamos com um terço do conto quando a raiva de um quarto por arrumar faz o narrador gritar, diz ele, “com todo o meu fôlego de português da serra: — Léaaaaah!”
Em três parágrafos que podiam ser um plano-sequência, o tempo de subir escadas, se acelerar o coração, vemo-la – “vi-te: pela primeira vez” exclama o narrador – e a luz em cheio na cara revela “a tua boca entreaberta de espanto, viva e carnuda…” No mesmo parágrafo – no cinema, um movimento de câmara, de cima para baixo – revelam-se os seios, “fortes e salientes”, a “curva criadora e firme” das ancas.
Na vida deste narrador sem qualidades, Léah, falando o “francês aveludado de Pas de Calais”, é uma explosão que se “abre e rescende como uma flor”, e é a invulgar afirmação, na literatura portuguesa, de uma sexualidade desinibida, celebração de uma “carne comunicativa, terna e compassiva”.
Um grito juntou Léah ao narrador português. Amam-se todas ou quase todas as noites, ou mesmo às quatro da tarde – cabeça de quem reclinada sobre o regaço de quem? – boca sincera e solícita dela a apaziguar a lusitana exasperação do homem a quem Léah chama Monsieur Carlôss.
Léah oferece-se livre, tépida e pagã, como pagã lhe oferecerá a irmã, levantando-lhe devagar a saia: “Não é verdade que é linda?… E ainda é virgem”, pedindo-lhe que a beije, que Monsieur Carlôss beije a irmã, o primeiro beijo que a fará sofrer.
Léah não ama, mas estima um “pauv’ Fe’dinand” bonito, decente, bom emprego e pressa de casar. Pela irmã, pelo “pauv’ Fe’dinand” resignado e contente só de sair com ela, ou por causa de Madame Lambertin, a patroa flamenga de maneiras livres, a cujo colo o narrador se sentava antes, passam do encantado erotismo juvenil e pagão a réus “de traição e deslealdade”. Se já estão a ver o filme, leiam por favor o conto.
“Léah” foi escrito num português cristalino. Tenho a certeza de que também se pode filmar assim.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.