Olá. Em um dos últimos fins de semana, conversando com amigos em um dos botecos aqui do Guarujá (na verdade, um restaurante, mas, vá lá, um boteco), contei uma aventura que me aconteceu logo no início de minha passagem pelo Jornal da Tarde, e que até então havia permanecido quieta aqui comigo (não sei por quê). Bem, esses amigos exigiram que eu colocasse a história neste site.
Estava no JT havia dois meses – um foca perfeito e completo, naquele maio de 1968, quando houve um fato importante: no dia 26, ou seja, na véspera, tinha acontecido o primeiro transplante de coração não só no Brasil, mas na América Latina.
E o que me ordenava o chefe de reportagem? Que identificasse o doador. Tudo o que se sabia, até ali, é que um homem fora atropelado em uma avenida na periferia de São Paulo, e que seu coração havia sido utilizado no transplante. Fui até aquela avenida, em frente ao número que constava no boletim de ocorrência como referência do atropelamento. E comecei a bater pernas.
Naquele tempo, e estamos falando de 43, quase 44 anos atrás, repórteres batiam pernas. Hoje não: eles batem teclas no Google, ou nos celulares. A pergunta, óbvia, era se alguém sabia quem era o atropelado da noite passada, ou madrugada. Ninguém.
Até que cheguei a uma oficina, não me lembro se mecânica ou de outro tipo, em que o encarregado me respondeu: “Quem foi não sei, mas temos um funcionário aqui que saiu ontem e não voltou até agora”. Bem, o episódio não me vem suficientemente claro hoje, mas o fato é que fui conduzido até o quarto do tal funcionário (ele tinha o seu quarto na oficina). Procurei por tudo – na verdade, hoje não imagino o que estava procurando – ajudado, com certeza, pelo fotógrafo que me acompanhava, cujo nome e figura não me ocorrem.
A única coisa que me chamou a atenção foi uma chave encontrada lá e que o encarregado esclareceu que era a chave do quarto. Não sei por que, realmente não me ocorre o motivo, perguntei se poderia levar a chave. O rapaz concordou.
Depois de percorrida toda a redondeza, o que me restava? Ir ao Hospital das Clínicas, onde havia sido feito o transplante, e tentar saber se alguma informação nova identificava o doador. Procurei dona Clarisse Ferrarini, a enfermeira-chefe, uma das principais fontes de informação de Ewaldo Dantas e Valéria Wally.
Naquela época, dias atrás, Ewaldo Dantas, um dos melhores repórteres brasileiros, estivera no Hospital das Clínicas de São Paulo visitando um amigo. E… Abro aqui um enorme parêntese, desculpem. Ewaldo tem amigos íntimos, e repito, tem amigos íntimos, em todos os lugares. Naquela época tinha uma casa em Ubatuba, ou Caraguatatuba, e me convidou para acompanhá-lo em um fim de semana. Aceitei e perguntei: quanto tempo de viagem até lá? E ele: “Depende, com boteco ou sem boteco?”. Fomos. Paramos nos botecos, é claro. E Ewaldo era amigo íntimo de todos os donos dos botecos. Parêntese encerrado. Ewaldo visitou um amigo no HC e ficou sabendo de um iminente transplante de coração, que seria o primeiro na América Latina.
Voltando ao jornal, ele se reuniu com a chefia, contou o que estava para acontecer, e imediatamente (e secretamente) foi montada uma equipe para acompanhar tudo de ali em diante. Já se sabia quem seria o transplantado: o lavrador João Ferreira da Cunha, de apelido João Boiadeiro. Um repórter, Dirceu Soares, se a memória não me trai, foi enviado para a cidade natal dele para reconstituir sua história. E, não menos importante, a repórter especial Valéria Wally foi escalada para trabalhar diretamente com Ewaldo. Não deu outra: feito o transplante, o Jornal da Tarde lançou uma edição extra, a primeira de sua história, e conquistou o Prêmio Esso de jornalismo daquele ano. Eram outros tempos.
Voltando à minha conversa com dona Clarisse, a enfermeira-chefe do HC, tentando identificar o doador: nada, nenhuma informação a mais, nenhum documento nos bolsos do homem. Havia apenas um objeto com ele, uma chave. Imediatamente peguei a chave que trazia comigo e perguntei a Clarisse: “A senhora poderia fazer a gentileza de comparar esta chave com a que ele tinha?”. “Posso”, ela respondeu. Alguns tensos momentos depois ela voltou e anunciou: eram exatamente iguais.
Não me lembro com precisão o que fiz a seguir, mas acho que voltei como um foguete para aquela oficina na periferia e, quando cheguei ao Jornal da Tarde, pouco mais tarde, levava o nome completo do doador – Luís Ferreira Barros, e uma foto 3×4 dele. Estavam na primeira página do JT do dia seguinte, com a foto ocupando todo o espaço abaixo da manchete.
Dezembro de 2011
Anélio, excelente aperitivo para você contar outras histórias de sua vida de repórter. A do JB (João Boiadeiro)dá um filme. Um foca resolve o grande mistério da história. Sem mostrar o doador, convenhamos, o furaço não seria a mesma coisa. Que tal nos contar o “banquete” que você teve na cidade mais miserável do País? Só uma sugestão, assunto não lhe falta.