Nós sonhávamos

Tarde quente de fevereiro, meu filho me passa o telefone.

— Pra você, mãe. Vânia.

— Vânia?

Penso em uma prima, mas só nos falamos – raramente – por e-mail.

Penso em uma fisioterapeuta, mas só nos falamos quando quebro algum osso, ou rompo algum ligamento. Nos últimos tempos, a duras penas, tenho me lembrado de ter algum juízo.

Penso em uma amiga dos tempos de estudante, em Belo Horizonte, mas não pode ser. Não nos falamos desde os anos sessenta, quando me mudei pra São Paulo.

Atendo, imaginando que meu filho se enganou.

— Alô?

— Vininha!

Se me chamam assim, só pode ser amizade antiga, penso.

— É a Vânia!

— Vânia?

Ela diz qualquer coisa que não entendo, tá chovendo forte, a ligação não ajuda.

Ela ajuda:

— Vânia, do vestido de noiva!

— O quê? Vesti… Pô!!! Não acredito!

Minha amiga dos anos sessenta – sim, era ela! -, companheira em rigorosos pensionatos de freiras e em solidárias repúblicas de estudantes, lembrava, pra que eu me lembrasse dela, seu vestido de noiva. Nosso vestido.

Reavivando a memória, me voltaram, quase presentes, aqueles benditos anos de Mary Quant, JK, Bob Dylan, bossa-nova, nouvelle-vague, passeatas, prisões, liberdades.

Entre missas e violões, salas de aula e de cinema, bailes e namoros, treinávamos o futuro.

Em pensionatos, repúblicas e universidades, treinávamos, sempre em grupo, o tempo todo, afetos e proximidades que – talvez não soubéssemos –, durariam mais que aqueles tempos e lugares.

Quando a voz de minha amiga – sul de Minas, Carmo do Rio Claro –, disse meu nome à moda antiga, lembrando seu/meu/nosso vestido de noiva, senti que ela havia caprichado no treino. Seu tom de voz guardava uma ternura eterna, fácil de recordar, impossível de esquecer.

— Lembra do vestido de noiva?

Como não me lembraria?

Umas das primeiras da turma a se casar, seu vestido – lindo! – era daqueles que povoam os sonhos de noivas que sonham com vestidos inesquecíveis.

Nós sonhávamos.

Ao chegar minha vez, me vi zanzando da república pro trabalho, tempo curto e corrido, minha mãe na fazenda, tudo demorado, nada de carro, telefone nem pensar, e o vestido dos sonhos?

Um dia, em sua casa de casada, Rua Levindo Lopes, entre uma e outra xícara de café, um e outro pão de queijo, um e outro doce de sua terra, Vânia propôs:

— E se negociássemos meu vestido?

Mineiras desde sempre e para sempre, ali, no aconchego da sala bonita, só nós duas, quase em surdina, ela querendo vender, eu precisando comprar, negociamos.

Dizem que não existem noivas feias, e sigo suficientemente mineira pra discordar. No entanto, não me cabe garantir que eu representasse um modelo de beleza naquele fim de tarde de sexta-feira, desfilando pela Igreja. Igreja, não. Capela. Capela simples, bonita. Frades Franciscanos.

Quanto ao vestido, nenhuma dúvida. Orgulhoso de seu certificado de garantia de beleza, herança de minha fiel amiga, ele atravessou a capela simples e bonita confirmando fazer parte – para sempre – dos sonhos de quem sonha.

Nós sonhávamos.

PS. Vânia, coincidência ou não, você me ligou em 11 de fevereiro. Dia em que usei o seu/meu/nosso vestido. Mais de quarenta anos.

Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma, em 3/2011.

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