Nada acontece lá fora

Ontem, sábado, depois de um dia inteiro brigando com um texto que teimava em não me obedecer, busquei o melhor remédio. Música. Fora de casa, pra me distanciar do teimoso.

Eu sabia: se não saísse, se – simplesmente – trocasse o escritório pela sala, sorrateiro, insistente, ele se insinuaria em trabalhos alheios já devidamente musicados. Pesadelo sem tamanho.

Sem tamanho. Em vez de ouvir, encantada, “toda a dor da vida me ensinou essa modinha”, eu ouviria, desolada, “nada acontece lá fora”.

Eu sabia – o autor sempre sabe – que o problema do meu texto estava – sobretudo – nessa frasezinha sem importância: “Nada acontece lá fora”.

Poderosa, a maldita – ou bendita? – ela imperava lá fora e, cá dentro, emperrava meu pensamento, que se recusava a me revelar segredos frequentemente escondidos em linhas e entrelinhas.

Consciente de que a maldita – ou bendita – invadiria o universo alheio, contaminando as letras das músicas que me emocionariam, resolvi fugir. Sem deixar endereço.

Fechei a porta com cuidado. Ruídos insignificantes podem trair, nunca se sabe.

Fui pro teatro da Livraria da Vila, pedir socorro ao Wagner Homem, ao Rogério Silva e ao seu filho, Gustavo Godoy, que me inundaram de melodias e de textos buarqueanos.

Quando cheguei, Wagner, já tendo me visto por lá algumas vezes, perguntou, entre surpreso e sorridente:

— Você não se cansa de nós?

Eu poderia ter lhe respondido que me canso, sim, mas de textos emperrados, em que “nada acontece lá fora”.

Disse-lhe que não me cansava, e era verdade. Não se cansa de belezas, nem de emoções.

Fui ao lugar certo. Trancado em casa – sem dono, sem rumo, sem solução –, meu texto não teve saída.

Mudo, não teve como invadir as histórias contadas – com graça – pelo Wagner, nem as letras das melodias cantadas – com carinho – por Rogério e Gustavo.

Uma a uma, mais uma vez, fui ouvindo as histórias e as músicas contadas e cantadas a partir do livro Chico Buarque: Histórias de Canções, resultado de um trabalho meticuloso de pesquisa de Wagner Homem, acompanhado de perto pela edição cuidadosa e competente de Leonel Prata.

Hoje, manhã clara de domingo, ligo o computador, e sinto que a noite de ontem ainda me faz bem. E, mansamente, uma leve desconfiança me assalta: lá fora, alguma coisa haverá de acontecer.

Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprogama, em abril de 2011.

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