Música e vida

Às vezes falta música em minhas crônicas. Não é culpa minha. A vida é que, às vezes, chega muito dura e não abre espaço para boas sonoridades. Então, neste momento, começo a ouvir a gravação de Miles Davis de uma canção de Michel Legrand, “Once upon a summertime”, com arranjo de Gil Evans. Eu me lembro bem da primeira vez que a ouvi. Lá se vão muitos anos e acabara de conhecer um tal Bituca, amigo novo e que se tornaria parceiro para sempre. Ele me emprestara um LP de seu ídolo, Miles, Quiet Nights.

Fechei-me no escritório de meu pai, a noite já caíra sobre a cidade e pus o disco para tocar. Quando a canção começou a rodar na vitrola fui atingido por um raio de sensibilidade, de tristeza e alegria, de felicidade. O que era aquilo, meu Deus? Lágrimas saltaram dos olhos para o rosto juvenil e eu fiquei, no escuro, embasbacado e concentrado, emocionado até às raízes de todos os pelos. Viajei mundos que ainda não conhecia. Mergulhei fundo naquela aventura e repeti dezenas de vezes aquela faixa, que me marcou para sempre.

Depois de muito tempo fui ouvir o complemento do disco, nossas “Aos pés da Santa Cruz”, “Corcovado” e a tradicional “Prenda minha”, que o músico americano, como tantos compatriotas seus fizeram antes e depois, espertamente assinava como autor. Ouvi tanto aquele LP, que tempos depois eu o compraria em todos os formatos. Como nesse último junho, passeando pelas ruas de Lisboa, antes do vinho e do bacalhau, adquiri uma caixa com as gravações completas de Miles e Gil Evans para a Columbia. Livro e seis CDs por nove euros.

Quando não é a música, é a literatura e o cinema que me levam a um estado de satisfação que tornam a crônica de minha vida bem agradável. Viajo com os personagens literários, entro em suas mentes, sinto suas dores e contentamentos, exercito o pensar, o refletir. Quando é filme, sou o Mastroianni de Oito e Meio, o John Wayne de Rastros de Ódio, Anne Bancroft de O Milagre de Anne Sullivan e a câmera/olho que tudo vê, percebe e grava na memória.

Muita gente encontra esse consolo e incentivo na religião. Outros, nos esportes e nas brigas campais dos estádios de futebol de hoje. Há aqueles que gostam mesmo é de guerra, de destruição, de fanatismos.

Eu, além da arte, busco mesmo a minha redenção é nas pessoas que amo, nos seres humanos que brilham ao meu redor. São as minhas crianças de ontem e de hoje, os amores e amigos que cultivei, os que me fizeram e se foram.

São olhares e carinhos que tenho e sinto necessidade de retribuir. Tia Lourdes espera minha visita e estou em falta. E eu vou, pois a vida é música e, logo e principalmente, amor.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em agosto de 2011.

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