Histórias queimadas

Dizem que era um jovem bonito e bom poeta, admirado pelos rapazes e moças de seu convívio. Atingido pela tuberculose, viveu menos do que merecia e sem obter o reconhecimento da cidade e de seus contemporâneos. Para os que viemos depois nada dele ficou, pois queimaram seus escritos, suas roupas, seus pertences.

Esse outro era músico e compositor. Era portador de hanseníase que, em sua época, condenava os que a tinham com o preconceito e o isolamento absoluto. Na solidão de seu quarto compunha melodias, canções e concertos que colava nas paredes. De seu leito ficava a solfejar as suas criações. Quando se foi, botaram fogo em tudo o que em vida tocara. Nada restou, apenas cinzas, de tudo o que ele fora e pensara. Se foi gênio ou um artista comum ninguém mais pode dizer.

Por precaução, descaso ou medo da verdade se queimam as memórias. O que homens fizeram de nobre ou desprezível perde-se na poeira ou no lixo.

Os maestros das bandas do interior de Minas geralmente compunham o que seria executado pelas corporações nos dias de festa. Quanto dessa preciosidade resistiu ao tempo, às traças ou ao fogo dos parentes? Difícil saber. Mas há casos de achados relevantes. Curt Lange, alemão, foi encontrar em aposentos do Pão de Santo Antônio, em Diamantina, um riquíssimo acervo de composições da música colonial mineira. Muitos anos depois, pesquisando no mesmo local, Odette Ernest Dias, nascida na França, descobriu e nos revelou a música que a população do final do século XIX criava na cidade onde nasceu JK. Música elaborada e formalmente escrita em partituras que não se apagaram.

Guardar obras de arte para que todos, através dos tempos, possam vê-las e senti-las é algo que ninguém discute, todos aplaudem. O mesmo deve ser dito para os documentos que comprovam o que foi feito, o que foi construído e destruído no passado. A História existe para que conheçamos as belezas e as tragédias do caminho da humanidade até nós.

Conhecemos Sócrates porque seu discípulo, Platão, narrou o que dele ouviu e iluminou para nós a sabedoria de seus ensinamentos. A verdade é complexa mas devemos procurá-la em todos os ângulos e por todos os meios que dispomos.

Mandela, sem rancor, abriu espaço para que a verdade, ou o mais próximo dela, fosse conhecida na África do Sul. É o que se espera que seja feito no Brasil, para que os obscuros episódios ocorridos durante o regime militar recebam a luz do sol. Dizem que documentos foram queimados, mas debaixo dessas cinzas deve haver muito fato a ser revelado.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em setembro de 2011.

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