Facas na carne

O governo quer instalar uma Comissão da Verdade para apurar as violações aos direitos humanos durante a ditadura militar e todos os gatos já arrepiaram os pelos das costas. Os gatos da esquerda não querem que a Comissão apure as verdades dos seus guerrilheiros e os gatos da direita acham que tudo não passa de revanchismo.

Não é um bom começo para um trabalho sereno de uma comissão serena.

O jornal O Globo publicou a notícia sobre um documento de militares contra a instalação da comissão; se confirmada a sua existência, esse documento configuraria uma insubordinação, ou no mínimo um ato de indisciplina de uma corporação submetida ao comando da presidência da República.Já O Estado de S.Paulo, no dia seguinte, também noticiou a existência do documento, mas o atribuiu à assessoria parlamentar do Exército, que estaria respondendo protocolarmente a uma consulta da assessoria parlamentar do Ministério da Defesa.

Claro é que, seja de quem for, o documento expressa a opinião das Forças Armadas. Mas é evidente que do ponto de vista formal, se for mesmo da assessoria parlamentar, seria difícil enquadrá-lo como quebra de hierarquia ou transgressão disciplinar, uma vez que está expressando uma opinião que lhe teria sido solicitada.

O documento diz que a instalação da Comissão “provocará tensões e sérias desavenças ao trazer fatos superados à nova discussão” ,que vai abrir “uma ferida na amálgama nacional”, e que vai servir para “promover retaliações políticas”.

Opiniões fortes, consistentes e pertinentes, sendo assinadas por uma assessoria parlamentar, mas inteiramente inapropriadas se fossem assinadas pelo comando da corporação. Há realmente uma sutil diferença formal entre as duas situações. Sutil mas fundamental.

O fato é que a instalação de uma Comissão da Verdade, feita mantendo-se a observância à Lei da Anistia, já ratificada por decisão do Supremo Tribunal Federal, e destinada à rigorosa apuração factual, sem caráter punitivo, envolvendo igualmente as partes em disputa, seria uma contribuição inestimável, neutra e científica à História do País.

O problema é que os fantasmas do passado são mais fortes do que a razão. A indignidade da tortura nos quartéis, devidamente execrada e condenada pela sociedade, é mais forte para as vítimas e seus familiares do que o assassinato de alguns tantos inocentes pelos guerrilheiros em armas que queriam derrubar o governo opressor? Quem mede a dor de cada um? Quem determina com exatidão de onde partiu a primeira bala?

É um período da História do País ligado às paixões e não à racionalidade. Haverá alguém capaz de enfiar o bisturi na ferida ainda latente sem arrancar gritos de vindita dos que ficaram com a guarda da memória das vítimas?

A transparência histórica talvez admita, ou até mesmo precise dessa última revisão. O País tem o direito de saber o que aconteceu nesse período histórico, e como aconteceu. Mas se tudo for transformado num palco de ressentimentos e revanchismos, o Brasil tornará a perder, como já perdeu nos anos de chumbo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 11/3/2011.

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