Era uma vez

Quando eu era criança, ouvi muitas histórias.

Algumas tinham reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, madrastas, bruxas, castelos, carruagens, cavalos. Casamentos.

Outras, monstros, dragões, lobisomens, assombrações, armas, esqueletos, caveiras, cemitérios. Enterros.

As primeiras – princesas adormecendo anos e anos, madrastas colocando veneno em maçãs, bruxas dançando diante de caldeirões fumegantes – me emocionavam, ainda que não me impressionassem tanto.

Afinal, eu nunca tinha vista nenhum rei. Nem um. Nenhuma princesa. Nem uma. Carruagem? Jamais. Bruxa? Nem pensar, ainda bem.

Sobravam os cavalos, esses sim, meus amigos de cavalgadas quase diárias. Galopando pelos campos, escorregando em pedras, comendo milho na mão, em nada eles lembravam os companheiros ilustres. Aqueles das histórias ouvidas cada noite, na cozinha, em volta do fogo. Aqueles habitavam reinos infinitos, por onde conduziam carruagens de ouro.

A vida de todo dia sempre me ensinava que reis, rainhas e carruagens douradas, só no reino do faz de conta.

Por outro lado, lobisomens e assombrações, esses rondavam a casa, quem não sabia? Urravam, gemiam. Arrombariam a porta, mais dia, menos dia. Isto é, mais noite, menos noite.

Os tempos de criança foram ficando pra trás, a vida foi acontecendo, minhas impressões se confirmando.

Reis eram, sim, de mentira. Lobisomens, deus me livre, poderiam ser de verdade.

Entretanto, como o mundo é cheio de surpresas e, como tudo o que inventam, acontece – o que não inventam também –, na última semana, diante da televisão, me senti na fazenda, aquecida pelas brasas que sempre ardiam no centro da cozinha.

Chão de tijolos, problema algum. Em volta do fogo, noite adentro, a vida ia e vinha entre café, bolos, pães de queijo, pipocas, conversas, histórias. Histórias.

Um dia, isto é, uma noite, brasas mais ardentes que o necessário, histórias certamente mais alucinantes, ninguém se lembrou de apagar as brasas. Dia seguinte, um buraco bem no centro da cozinha. Tijolos também podem ser queimados, aprendemos.

A lembrança ficou lá, longo tempo, marcando, manchando – e escurecendo – os tijolos, até que, um dia, uma reforma tornou tudo novo. Como se fosse possível.

Como se fosse possível, na última semana a televisão me levou de volta a aqueles lugares e aconchegos.

Ocupadas por reis, rainhas, príncipes e princesas, as carruagens douradas e seus cavalos ilustres pareciam conhecer meus caminhos. Sem nem um errinho, sem confundir nem uma esquina, me levaram de volta ao chão queimado da minha infância. Bem no meio da cozinha.

Tive certeza de ouvir – “era uma vez” – as antigas histórias.

Histórias de mentira, à beira do fogo, em que príncipes e princesas se casavam, participavam de uma festa de muitos dias e muitas noites e, depois, eram felizes pra sempre.

Nas histórias de hoje, de verdade – até bruxas estavam presentes, disseram – com televisão e tudo, príncipes e princesas também devem ser felizes para sempre. Até que o para sempre acabe.

Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma, em maio de 2011.

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