Em um site, o mar sem fim

Aviso aos navegantes da web. Tempo bom e vento a favor para quem estiver disposto a viajar pelos quase 7.500 quilômetros da costa brasileira, descobrir sua dramática realidade, sua beleza, riqueza cultural, tradições.

A partir de hoje, um clique em http://www.marsemfim.com.br/ oferecerá ao navegante 45 horas de documentários, cerca de 4 mil fotos, mapas, dezenas de entrevistas com professores universitários, ambientalistas, técnicos do governo, e gente simples e sofrida, os nativos.

O navegante ainda pode escolher outro destino, a Antártica. Esta expedição, que o levará à Ilha Rei George, onde está a base brasileira, resultou em cinco horas de documentários.

 

O criador do site e autor de todo o material é João Lara Mesquita, da família proprietária do jornal O Estado de S. Paulo. Apaixonado pelo mar desde criança, esse foi seu caminho natural quando deixou o comando da Rádio Eldorado de São Paulo, em 2003.

Capitão amador, transformou-se em um minucioso explorador e documentarista. Em uma viagem de dois anos (2005 a 2007) palmilhou a nossa costa. Partiu da foz do Rio Oiapoque, no Amapá, e chegou a Rio Grande, no sul do Rio Grande do Sul.

Durante a viagem, mandava para a TV Cultura episódios do documentário que ia produzindo, o Mar Sem Fim. Foram 90 episódios de meia hora, que somaram 45 horas.

“Afirmo sem medo de errar: este é um dos mais completos sites privados em conteúdo sobre o mar e a zona costeira”, diz João.

A programação para o ano que vem já está pronta. Ainda no primeiro semestre aproa o barco para o Norte. Vai refazer a viagem pela costa, desta vez no sentido contrário, de Rio Grande para o Amapá. A viagem estará no site e na TV Cultura.

Mar Sem Fim não é apenas o nome do documentário já produzido e desse por fazer. Nem só o deste site. Foi o nome do veleiro usado na primeira viagem; e é o do barco atualmente em uso.

João é entusiasta da vela, mas a expansão de seus projetos obrigou-o a trocar seu veleiro por um troller. É uma traineira, um barco de pesca grande, robusto, de grande autonomia, que os americanos adaptaram para embarcação de cruzeiro. O de João tem 20 metros, três cabines e leva até seis pessoas.

O barco é um dos personagens na viagem à Antártica. A expedição resultou também em uma caixa com três DVDs, que estão sendo lançados agora: Mar Sem Fim/ Viagem à Antártica (veja em Livros/DVDs no site).

João criou um site de apoio durante a viagem de dois anos pela costa. Queria mostrar o que não cabia nos episódios da televisão. “Fazia uma entrevista de duas horas com um especialista, e tinha que escolher um minuto para pôr no ar.” Na viagem à Antártica, abriu “mais um pedaço no site”. Depois, incorporou um blog. ”Ficou confuso, feio, difícil de navegar”.

Precisava de um site novo, para colocar todo o conteúdo que acabou juntando (tem 25 mil a 30 mil fotos). Uma amiga o ajudou na criação do site. Abriu nele um banco de imagens, que podem ser compradas (há boa procura) por publicações. Mas basicamente está à disposição de estudantes e pesquisadores da costa brasileira.

O www.marsemfim.com.br é, por assim dizer, um site com trilha sonora. Basta clicar em Música p/ Navegar, e escolher uma das seleções. A música acompanhará a navegação pelo site. Nisto entrou a formação de João, que estudou música e foi programador de rádio (a Eldorado).

A página inicial do site poderia ser a foto de um belo recanto do litoral. Mas João buscou algo diferenciado. Assim, ao abrir a página, o navegante se depara com a foto da tela de um radar, que domina todo o espaço. O radar é o do barco de João.

Faz sua varredura, ao mesmo tempo em que soa o código morse: três toques curtos, três longos, três curtos. Ou seja, SOS, o pedido internacional de socorro. “É um recado subliminar”, explica João. “O pedido de socorro dos nossos mares.”

“Tem que ocupar. Uma ocupação bem feita, ordenada, com regras”

Na entrevista exclusiva abaixo, João Lara Mesquita conta como se transformou num especialista da costa brasileira entrevistando mestres, e depois se deslocando aos lugares para ver tudo com seus próprios olhos. A situação dramática que testemunhou também está relatada aqui.

“Eu sempre gostei de mar. Tive sorte de ter pai que gostava de pescar e desde o final dos anos sessenta (aos doze anos) comecei a sair de barco com ele. Eu nunca gostei daquele programa, eu sentia uma atração e repulsa ao mesmo tempo. Porque meu pai é pescador, é obcecado, fanático. Pescava doze horas por dia e eu achava aquilo um horror, chatíssimo, enjoava. Mas eu gostava do ambiente, gostava do mar. Quando ele parava de pescar eu dizia, que delícia, que espetáculo, que paisagens.

Durante os anos setenta, tive o privilégio de assistir as costas entre Rio de Janeiro e São Paulo desocupadas. Era antes da BR-101. Nós chegávamos a passar quinze a vinte dias em Angra dos Reis sem ver vivalma. E depois abriu a estrada, que não tinha um plano de ocupação, de zoneamento. Em três, quatro anos, detonaram o litoral. Se não tem regra de ocupação é o Deus dará.

Eu não sou xiita, como alguns ecologistas que dizem ‘não pode ocupar’. Tem que ocupar. Tem que fazer girar a economia, tentar fazer com que a vida desse pessoal que está na costa melhore. Agora, você pode fazer uma ocupação bem feita, ordenada, com regras. E você mantém aquela beleza para o resto da vida.”

Frágil, sob pressão

“O saneamento básico no Brasil é uma piada. Ninguém quer fazer porque custa muito caro, é uma obra demorada, ninguém vê e não dá voto. No Brasil só 20% só do nosso coco e xixi recebem algum tipo de tratamento. E isso tudo se reflete no litoral. Nós temos uma densidade muito mais alta no litoral que no interior, dezessete metrópoles brasileiras estão na costa. Esse lugar onde existe uma tremenda pressão humana, uma pressão gigantesca de ocupação, é um lugar fragilíssimo. Como dizem os especialistas, é uma zona de encontro entre o mar e o continente, assolada por ventos, por maré, por ressaca, há uma série de forças naturais que maltratam essa faixa de zona de transição.

E nós adoramos o mar, a praia, vamos viajar e se constroem casas, fazem condomínios, hotéis, em lugares onde não pode. Tudo isso, mais os esgotos mal tratados, está contribuindo para a gente detonar a vida dos oceanos. E se a costa brasileira já não tinha estrutura , hoje, com a redução da pobreza, há 31 milhões de pessoas a mais.

 Aulas antes do embarque

“Quase todos os professores que entrevistei diziam: o poder público não nos ouve, não nos chama’. Ou seja, quando vão fazer uma obra preferem chamar uma ONG, um guru qualquer. Não vão à faculdade, onde estão os brasileiros pagos com dinheiro público. O professor fica a vida inteira estudando o mangue, a duna, sabe tudo daquilo, e não é chamado.

Na série do Mar Sem Fim, era estratégia nossa antes de começar qualquer Estado ver o que ele tem. Praia, costão, serra. Então íamos procurar os especialistas nisso para eles explicarem. Eu virei um expert. Com cada um desses eram duas horas, duas horas e meia. Depois, a gente fazia as perguntas e gravava. E a seguir eu entrevistava ambientalistas, procurava as ONGs, em cada Estado. Por fim, buscava a secretaria estadual ou municipal do Meio Ambiente.

Só depois a gente pegava o barco e fazia a costa. Então, eu fui aprendendo coisas do arco da velha. Geologia, biologia marinha, e aí ficava ainda mais grosseiro quando a gente via as barbaridades cometidas pela costa.

Os professores ficaram fãzíssimos da série Mar Sem Fim, porque eu fui, modéstia à parte, um dos primeiros jornalistas a ouvi-los e dar espaço para eles. Como eu vinha fazendo a costa do Amapá para baixo, quando cheguei no Paraná, por exemplo, estavam todos esperando pela gente, no campus de Paranaguá (no litoral).

Eu entrevistava hoje, semana que vem estava no ar. Então eles começaram a assistir aos programas, esperando a vez deles. Foi assim ao longo de toda a costa brasileira.”

 Brasileiros ao Deus dará

“Eu fiz questão de conversar com os nativos também, conhece-los. Eu considero esses brasileiros os mais deixados ao Deus dará entre todos. Porque eles não são unidos. As populações nativas não são unidas em lugar nenhum do mundo. Até pela dificuldade. Alguns pescadores, um pouco mais evoluídos, semi-profissionais, começam a tentar se unir para defender alguma coisa.

Em São Paulo, o Estado mais rico da nação, você vai para Ilha Bela (litoral norte), e vê o lado do Canal de São Sebastião: um primeiro mundo. Você sobe no carro e vai até Castelhanos, está praticamente na idade da pedra. Um morro e uma estrada de trinta quilômetros separam o cara do inferno e do céu.

Se em São Paulo você vê casos assim, imagine no Maranhão. Vi as casas da Ilha Cajual, de pau a pique, uma miséria absoluta, você entra é tão limpa ou mais limpa do que a minha. Chão de terra, mas você não vê uma folha fora do lugar. Eles se ressentem da ausência do Estado.

Um dia nós chegamos na ilha de Santana, no sul do Maranhão, e estava um pescador desesperado. Ele tinha dado em cima de um cardume de xaréu, tinha chapado o barco, e aquilo tudo apodreceu porque não tinha como escoar. Eles vivem com tão pouco, que se ele conseguisse transformar aquilo em dinheiro vivia dois três anos sossegadamente.

Só que não conseguiu, porque o governo fica fazendo essas coisas de demagogia que o Lula quer fazer, reforma aquária e não sei o quê. Bastava dar um mínimo de condições para esse pessoal espalhado ao longo da costa escoar a produção. Um geradorzinho com um freezer, por exemplo, uma merreca. Dava isso, o cara pescava o peixe dele, congelava, podia esperar um dia bom, pôr aquilo no barquinho e vender no centro mais próximo.

Eu ia falar com os professores e eles cansavam de me dar teses, tem aí duzentas teses que eles fizeram tentando subsidiar políticas públicas, seja para melhorar a vida do caiçara, seja para não ocupar duna. Está tudo espalhado por aí. Tinha os estudos, mas o Poder Público não chegou lá para conhecer.”

 Com a TV, dramas reais

“Na Ilha do Mel, quando nós estivemos lá, em 2006, a luz elétrica tinha chegado fazia um ano. Até então, ninguém via televisão, não tinham vontade de consumir. Com a televisão surgiram os dramas. Os filhos abandonaram a profissão, não querem mais saber de virar pescador. Querem ir para a cidade consumir, ter o tênis bacana, e não têm dinheiro. Então começa o tráfico de droga, entrar para a bebida de uma forma violenta, porque o cara quer tudo aquilo que a televisão leva para ele e ele não vê possibilidade.

Numa dessas, um sujeito lá, que não tinha um dente na boca, tenho o depoimento dele, contou que um caiçara trocou a casa dele por uma garrafa de cachaça. Isso você vê acontecer ao lado da costa, não é de agora. Desde o tempo em que eu era garoto, eu via caiçara vender a casa por um maço de dinheiro deste tamanho em nota de um. Achava que estava rico e dava a posse.”

 Mansão na areia

“Aqui em São Paulo tem gente que vai para o litoral, compra a casa do sujeito para ter a posse, depois derruba a casa e faz aquela grande mansão em estilo neo-clássico, que destrói a beleza cênica. Constrói no meio da areia, muitas delas eu tenho fotos. A casa mal pronta, já está cheia de muro de arrimo para a ressaca não levar embora.

A praia é móvel, é o que os professores, os cientistas falam. Existe um equilíbrio dinâmico, e a hora em que você tenta parar esse equilíbrio, você arruína o negócio. Porque é para ser dinâmico. A foz de um rio um ano está aqui, outro ano está lá. Isso varia em função da ressaca, do vento, da coisa toda. A areia é móvel. Não pode tentar segurar. E toda vez que você tenta fazer isso gera erosão, gera desastres homéricos, um desastre em cadeia. Uma coisinha aqui, vai redundar lá na frente.”

 Brasil que ninguém vê

“O que eu mostrei no documentário, e está no site, é um Brasil que não se conhece. É preciso ir aos lugares para ver. Lugares que não atraem muita atenção da mídia. Esse Brasil continua lá atuando, sofrendo, maravilhoso, bonito, rico em cultura, em tradição oral, em festas tradicionais, e muito pouca gente vê, dá pelota para isso.

É por isso que eu fico mais apaixonado pelo meu trabalho. Eu vejo que por mais que eu possa fazer, e tentar ajudar para contribuir, é muito pouco. Tem muito a ser feito ainda. Isso para mim é maravilhoso, mostra que eu posso me dedicar a vida inteira a esse assunto, que ele é inesgotável.

Além de tudo eu amo isso, eu adoro as duas coisas: eu adoro ter uma bandeira para defender, eu adoro ter um assunto que me obrigue a estudar, eu adoro estar no mar. Então isso tudo… minha profissão acabou sendo jornalismo, então eu falei caramba, o prato do dia está aqui, é eu transformar isso no que eu sei fazer, e procurar divulgar, e não vai acabar nunca. Tem outros enfoques, tem outras coisas, por mais que eu faça eu não vou conseguir esgotar esse assunto jamais.”

 Esta reportagem e a entrevista foram originalmente publicados no Diário do Comércio.

Um comentário para “Em um site, o mar sem fim”

  1. Apreciei imensamente, tocou-me especialmente a menção da sabedoria desprezada dos professores. Tive a honra de trabalhar com muitos desses professores… Atualmente, netos meus que se dedicaramà Biologia e por extensão à conservação da natueza, exultam quando eu digo que privei da sabedoria de muitos deles… Eles se encantam!!!

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