Depois de quase quatro meses de seca, a chuva bate em nossa casa. O cheiro de terra molhada penetra pelo nariz e traz uma sensação de tempos melhores.
Dá vontade de esquecer toda a violência e crueldade de que temos notícia a cada dia e mergulhar num mundo interior de sonho e felicidade. O amigo cão atravessa o pátio e se esconde debaixo de seu abrigo. Eu gostaria de fazer o contrário, me encharcar todo com o que cai do céu. A cabeça quente diante dos descaminhos do time do coração, mas ainda com uma pulsante esperança, começo a me lembrar de acontecimentos alegres que vivi.
Não preciso ir muito longe. Ainda nesta tarde, recebi a visita da Clara e do Lucas. Apresentei a ela, depois de assistirmos a um balé das princesas, a Mafalda e sua turma. Para ele sobrou a contemplação extasiada de seu avô. Esses são momentos que me enchem de energia e gosto de viver. Eu também já fui neto e aprendi muito com os meus maiores. Esse é um bastão que recebi e carrego com muito prazer.
Já andei muito de bonde e foi uma experiência enriquecedora, que não acabou, porque resultou em lembranças e canções. Brinquei de motorneiro e fui muito amigo de um deles. Histórias de vida do povo brasileiro que nunca mais esqueci. O trem então, meu Deus, foi companheiro de muitas jornadas Minas adentro. Para o Rio de Janeiro eu só ia de Vera Cruz, tão diferente dessa confusa e cansativa aventura de aeroportos dos dias de hoje.
A chuva fina de agora me faz recordar de uma outra, há muitos e muitos anos, em Diamantina. Caíam pedras de gelo e minha mãe, nem sonhávamos em ter geladeira, pôs uma bacia no terreiro e lá colocou algumas garrafas de guaraná. Era meu aniversário de cinco anos e foi o primeiro refrigerante fresco que tomamos, eu e meus irmãos.
Bola na rua, bola no peito, drible, bola no gol. Corri e suei, junto com meus companheiros, pelas ladeiras da cidade. Meus colegas de brincadeiras cresceram e assumiram profissões diversas, de lixeiro a médico. Todos eles guardados com carinho em minha memória. Em casa e na rua aprendi coisas essenciais para minha existência: amizade, palavra, caráter, respeito, bondade, alegria e amor. Aprendi a não aceitar sossegado que qualquer sacanagem seja coisa normal.
Estou de olho nos canalhas que infestam o Brasil e o mundo. Mas eu os afasto do meu pensamento quando vejo a menina partir uns pedaços de queijo e misturá-los ao doce de leite. Que cara boa a que ela faz. O rosto se ilumina enquanto ela mastiga devagar a delícia. O dia se completa com o cheiro da chuva e a visão da menina comendo queijo com doce de leite.
Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em setembro de 2011.