Uma vez, em uma escola, uma garota – treze, quatorze anos –, saia curta, cabelos compridos, olhos atentos, jeito de quem sabia das coisas, quis saber se eu me considerava diferente dos outros mortais.
— Outros mortais?
— É, mortais comuns!
— Mortais comuns?
— É, simples mortais!
— Simples mortais?
— É, mortais que não escrevem! Eu, por exemplo.
Tentei argumentar, ela mal me ouvia.
Recurso extremo, recorri aos membros da Academia Brasileira de Letras.
— Até aqueles imortais são simples mortais – disse-lhe.
— Não, não! De jeito nenhum! E os livros?
— Livros?
— Os livros ficam, não ficam?
— Imortais não seriam os livros, então? – perguntei, me animando.
Nada feito. A garota, que em momento algum demonstrava sonhar com a imortalidade – nem gostava de escrever, disse –, queria porque queria que eu me confessasse à margem da humanidade. Um ser não obrigatoriamente melhor, mas certamente diferente dos simples e comuns mortais.
— Não sei por que você insiste em não entender! Estou falando da maioria! Daqueles que não escrevem. Ou porque não sabem, ou porque não querem, ou porque não gostam, ou porque têm preguiça -, dizia ela, dogmática.
Tentei lhe dizer que qualquer cidadão considerado normal pode não saber, não querer, não gostar ou ter preguiça de encarar qualquer trabalho, dos mais corriqueiros aos mais sofisticados.
Nada feito. A garota parecia o escritor que, diante de uma crônica semanal, precisa vencer o desafio, custe o que custar.
Terminado o tempo da conversa, não conseguimos nos entender, não sei se feliz, ou infelizmente.
Deixei a escola convicta de que nada me faria diferente de ninguém, e ela deve ter tomado o caminho de casa certa de que existia gente que não entendia nada de nada. Como é que podia? Como é que podia um escritor não ter noção do próprio trabalho?
Frequentemente, tenho certeza de que não tenho noção de meu trabalho.
Terminado um texto – conto, crônica, carta, história juvenil, infantil, o que for –, nunca sei, naqueles primeiros momentos, se dei conta do recado. Se produzi, como gostaria, algo bom de ler, ou se me perdi em linhas apenas legíveis, sem eira, nem beira.
O segredo – quando se pode –, é esperar. Uma releitura, dias, meses depois, como se o texto, imunizado pelo tempo, fosse de outro autor, pode clarear as ideias. Se não passar de conversa fiada, sem eira, nem beira, voltará à gaveta. Ou adormecerá no arquivo de computador. Se, por outro lado, for de leitura fácil e agradável, será lançado aos olhos alheios.
Os olhos alheios têm me feito pensar. E lembrar.
Quando leio os comentários que, vez ou outra, leitores conhecidos ou desconhecidos deixam nesse espaço semanal, penso no ofício de escrever. E me lembro da garota da escola, saia curta, cabelos compridos, olhos atentos. Jeito de quem sabia das coisas.
Se a encontrasse de novo, haveria de dizer-lhe que, vez ou outra, me sinto, sim, um mortal meio privilegiado. Não pelo que escrevo, mas pelo que leio. Pequenas frases, observações, afagos, afetos. Surpresas, emoções, coincidências, confidências.
Uma vez, o colega Souza Freitas, leitor atento, me lembrou que a “primeira pomba desgarrada”, que eu trouxera de volta de um verso de Raimundo Correia, era, na verdade, uma “pomba despertada”…
Naquele dia, mortal simples e comum, me senti duplamente privilegiada. Por ser lida com cuidado e por saber que, quando me enganasse em meus caminhos, alguém haveria de – delicadamente –, me indicar atalhos e trilhas mais certeiros.
Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma, em maio de 2011.