As tragédias de Realengo

Os explicadores de tragédia e consertadores das portas arrombadas viveram intensos momentos de glória nas TVs, nas rádios, nos jornais e na internet depois da tragédia da escola do Realengo.

Os gritos desesperados das mães e pais na frente da escola onde aconteceu a tragédia foram a única e mais genuína manifestação de emoção num evento que os “explicadores” tentaram enquadrar dentro do seu quadro referencial de certezas, preconceitos, de suas subjetividades, dos GPSs ideológicos que os guiam, com os quais pretendem racionalizar e explicar o inexplicável.

Saiu da boca de um policial e ganhou trânsito em parte da imprensa a primeira e vaga informação de que o assassino e suicida teria algumas suspeitas ligações com o islamismo, como se a religião muçulmana, em si, fosse um atestado de alta periculosidade. Talvez o estereótipo de “sujeito estranho, de barba grande, que navegava o dia inteiro na internet, por sites muçulmanos”, como testemunhou com certa leviandade sua irmã de criação, tenha ajudado a compor esse primeiro “insight” falso, ainda no calor da tragédia. Mas a carta do atirador suicida falava em Jesus, e muçulmanos não falam em Jesus.

Afastada a suspeita islâmica, para alívio dos que confundem a “jihad” com a heróica luta de povos oprimidos contra o imperialismo, procuraram-se outros alvos:

1)  A inoperância do Estado, que não consegue sequer dar segurança a uma escola e que permite a entrada de homens armados, como se o Estado fosse também vigia e porteiro de todos os prédios do país.

2)  A incompetência do Estado (sempre ele!) em cuidar dos cidadãos atingidos por distúrbios mentais, como se eles andassem pelas ruas portando um cartaz, “internem-me que sou louco”.

3)  A religião, pois os trechos divulgados da carta do atirador suicida, além de falar em Jesus, ordenavam que o corpo não fosse manipulado por “mãos impuras”, como se a religião, em si, fosse causa de problemas mentais. No festival de estupidez que se espalhou pela internet depois da tragédia, um ilustre pensador pontificou: “Por que não existem fanáticos ateus”? E ele parecia acreditar mesmo nisso.

4)  A imprensa, pois um blogueiro da tribo dos progressistas – quase um patrono desse exótico espécime de cretinice militante – atribuiu ao que ele chama de “partido da imprensa golpista” uma articulação com a embaixada dos EUA numa campanha para “desmoralizar as religiões”, razão pela qual haveria interesse em fazer crer que o atirador suicida era islâmico.

5)  A não proibição do comércio legal de armas de fogo e do porte de armas, pois segundo o raciocínio dos defensores do desarmamento radical, as armas andam por aí sozinhas atirando nas pessoas e, se elas fossem proibidas, os bandidos não saberiam onde encontrá-las, já que, como todos sabemos, eles saem comprando armas na loja da esquina para assaltar e matar as pessoas.

Pensando-se no destino das crianças mortas e no tamanho do sofrimento de suas famílias, a tragédia foi grande demais para ser explicada por racionalismos políticos e ideológicos que produzem esse tipo de lixo interpretativo.

A verdade é que não sabemos explicar gestos individuais de insanidade como esse e nos falta humildade para reconhecer que ninguém – nem o Estado, nem as instituições, nem os indivíduos – tem controle sobre eles.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 8/4/2011.

Um comentário para “As tragédias de Realengo”

  1. Só uma observação: os muçulmanos falam, sim, em Jesus (Issa) e acreditam que ele preparou o caminho para Maomé. Uma das suras do Corão chama-se “Maria” (mãe de Jesus). Os muçulmanos consideram Jesus um profeta autêntico e, como os cristãos, acreditam que ele voltará.

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