As pedras de Charlie Chaplin

Foi Chaplin que atirou a primeira pedra. Uma montra imensa estilhaça-se em Atenas, um paralelepípedo da calçada parte a janela de um ministério e é ainda a mão de Chaplin que a lança.

A primeira pedra foi em The Kid. Chaplin é um vadio, the tramp, aquele a quem chamamos Charlot. Encontra um bebé abandonado. Cria-o no tugúrio onde mora e faz dele uma flor risonha, um miúdo ágil, solto.

Chaplin é mil vezes melhor do que um pai e envergonha uma legião de pedagogos. Treinada por Chaplin, a mão do garoto parece tão infalível como a funda de David e os vidros das janelas do bairro tombam como Golias. Oportuno, Charlot surge da esquina oposta com tudo o que um vidraceiro precisa para salvar do frio e da chuva os desabrigados moradores. Agradecem-lhe. Melhor, pagam-lhe: não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita.

The Kid evocava tempos de miséria, o inexaurível filão da infância do próprio Chaplin. Anos depois, em Modern Times volta, vadio outra vez, o mais tramp dos operários, para caricaturar a moderna sociedade industrial, então em ciclo de galopante desemprego e fomeca de vou–te contar.

Se fizera The Kid com um sorriso, talvez uma lágrima, Chaplin faz Modern Times com esgar crudelíssimo. Cruel consigo mesmo, não se poupando a um rosário de desgraças; cruel com os outros, infligindo-lhes as maiores torturas. Até encontrar a rapariga.

Bem sabemos que debaixo do palmo de cara tisnada, debaixo do negro vestido de chita roto, está a linda cara e o corpinho perfeito de Paulette Goddard. Mas por obra e graça da amorosa direcção de Chaplin – que de facto a amou em todos os sentidos que qualquer rosa-dos-ventos indique – ela é só “a rapariga”, a mais credível das raparigas, sonhadora, radiante, aquela que acredita que a felicidade há-de chegar.

É certo: não têm onde cair mortos, um tecto que os abrigue, uma côdea que os sacie. Vêem o guarda-nocturno de um centro comercial partir uma perna e, por horror ao vazio, Charlot corre a oferecer-se para o substituir. Fica. Melhor seria dizer, ocupa.

Clandestino e nocturno, Charlot traz a rapariga e ocupam aquela espécie de El Corte Inglès. Ele enche-lhe a fome de sanduíches, a boca de bolos e chantilly. Tanta fartura pede descanso e o quinto piso é o das camas e roupas de noite. A miséria dela veste-se de cetim branco e é bonito ver o rabo da pobreza aninhar-se em almofadas de penas.

Já tinha dito: as pedras de Atenas saíram da mão de Chaplin. Digo agora: os ocupas da Wall Street devem-lhe a sequência inspirada dessa noite de sonho. Mas cuidem-se, há mais pedras no caminho. A esbodegada bota de Charlot pisa uma tábua solta que tem uma pedra na ponta. Vai direita, em dia de greve, estoirar na cabeça de um polícia: o ciclo da desgraça recomeça. Pior do que a pedra na mão é a pedra no sapato.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

Uma breve nota do administrador do site:

Não seria necessário, mas lá vai: The Kid, claro, no Brasil é O Garoto. Modern Times, Tempos Modernos. E não é delicioso lembrar, ou ficar sabendo, que Carlitos em Portugal é Charlot, como na França? Dá para adaptar aquela velha frase: Pobre México, tão perto dos Estados Unidos, tão longe de Deus. Pobre Portugal, tão perto da Europa, tão longe de Deus.

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