Entra pelos ouvidos. Mas quando não entra por um e sai pelo outro, para onde é que vai a voz de quem fala connosco?
A voz de Cary Grant, quero é falar da voz de Cary Grant. Um dia, a secretária virou-se para ele, telefone na mão, e murmurou: “Está aqui o Presidente Kennedy a querer falar consigo…” O actor, que por acaso era inglês e se chamava Archie, foi ao telefone: “Sr. Presidente, em que posso ser útil?” (Toda a gente queria ser útil ao Presidente Kennedy.) John estava na Sala Oval, com o irmão Bobby ao lado, e contou-lhe que ambos queriam falar com ele. “Pois não, e como posso ajudá-los?”, insistiu o actor de Hitchcock. Encabulado, o Presidente balbuciou: “Bom, na verdade nós ligámos-lhe por uma razão simples. Queríamos ouvir a sua voz!” Eram dois miúdos, sentados ao colo duma nação, a quererem realizar um sonho: ouvir a voz de Cary Grant.
Como o melhor café, a voz dele era uma mistura excepcional de arábica e robusta. Um sotaque mais elegante do que petulante, uma pronúncia muito acentuada da primeira sílaba de cada palavra, a nonchalance de uma hesitação, o timbre de tenor, um pó de ligeira ironia a aromatizar, picante, o fim de frase.
A voz de Cary Grant levava os Kennedy ao céu. A de Kathleen Turner levou William Hurt para a cama.
Vamos admitir que a voz de Grant se instala nas limpas assoalhadas do cérebro a que chamamos lobos temporais. Entra e delicia, primeiro o córtex auditivo primário dos Kennedy, depois a área auditiva secundária, a deles ou a da princesa Grace Kelly, em To Catch a Thief (*).
As frequências baixas da voz de Kathleen Turner não param aí. Décadas antes, já Lauren Bacall ensaiara rouquidão semelhante. Para resistir, Bogart, essa antítese de Ulisses, fugia-lhe de iate para o alto mar. Em Body Heat (*), Hurt não tem fuga: a voz de Turner atravessa-lhe o córtex e vem por ali abaixo, com tal fragor muscular que o jovem Hurt rebentaria portas e janelas – e rebenta! – para colher a ressonância profunda que emana da boca dela.
A voz de Grant pára na sala civilizada do cérebro, a de Turner já vimos onde. Outras vozes infectam a alma, como o verme de Blake adoece o botão de rosa.
As vozes de certos padres ou mestres são melífluas, carregadas de persuasão e algemas. Dão o ouvinte como certo e enfraquecem-no, cortando-lhe o cabelo como Dalila a Sansão. Chatos como a potassa. Quando ouvirem vozes dessas, lembrem-se do grito do catolicíssimo Hitchcock. Descendo uma sinuosa colina suíça, ao ver um rapazinho a caminhar ao lado de um padre – a protectora mão deste por cima do jovem ombro, uma neblina de conselhos a esvoaçar já sobre a fresca cabeça –, Hitchcock abriu a janela do carro e gritou: “Run for your life, boy!” Com quem diz: Salvem esse coiro, rapazes. Há vozes piores do que grilhetas.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
msfonseca@netcabo.pt
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia
* To Catch a Thief: no Brasil, Ladrão de Casaca.
Body Heat: no Brasil, Corpos Ardentes.
Um compatriota por aqui!
Muito interessante e com muita graça este texto.
É curioso que não me lembro da voz de Cary Grant mas da voz de Kathleen Turner lembro-me muito bem, só de pensar nisso até fico com calor!
Tenho o filme “Who Framed Roger Rabbit” onde ela deu a voz a Jessica Rabbit a mulher do coelho e é de mais, até arrepia.
Não é aconselhavel para cardíacos!!!
Ao Sérgio Vaz que decidiu dar acolhimento aos meus devaneios a que mal se pode chamar crónicas, quero agradecer a gentileza. Olhando para o elenco de autores e para esta ideia consistente de 50 anos de textos, creio que vous passar semanas e semanas com dores de barriga, temendo e tremendo face à responsabilidade.
Consola-me a amizade que, desde o primeiro minuto, aqui senti.
Um abraço rijo
Que delícia de texto. A voz do Cary Grant combina com ele … charmoso, bonito, elegante … e o filme citado ” To catch a Thief” mostra muito bem.
Caro Manuel, se me permite a intimidade. Seu texto entrou-me pelos olhos e teve o mesmo efeito da voz de Cary Grant nos ouvidos dos Kennedy. Seja muito bem-vindo a este pedaço virtual de São Paulo. Gostei muito de lê-lo na ortografia original. Bom exemplo a ser seguido.
Caros Cezar e Valdir
Agradeço os comentários gentis. Tive a sorte do Sérgio me acolher nesta bela casa. Ainda, por cima, já vejo, é casa bem frequentada por cinéfilos amigos, o que me faz sentir bem.