Quando estive no Peru, há alguns anos, me lembrei de Vargas Llosa nos lugares por onde andei, poucos. Lima, Cuzco, Machu Pichu.
Em Lima, sua lembrança não me visitou apenas no centro da cidade, a catedral enorme, com marcas de cultura inca, domínio espanhol e terremotos, dividindo o espaço com o Palácio do Governo – Fujimori lá dentro –, trocando de guarda sei lá quantas vezes. Dia e noite.
Ela não me visitou, também, apenas nos bairros periféricos, água escorrendo por ruas sem dono, mendigos amanhecendo em calçadas esburacadas.
Nem apenas nos bairros cosmopolitas de Miraflores e San Isidro, avenidas arborizadas, hotéis internacionais, comércio intenso.
Ela subiu comigo ao morro de San Cristóbal, ponto mais alto da cidade, onde me senti uma sobrevivente.
Para se chegar lá, enfrentava-se uma jardineira sacolejante, que escalava a montanha íngreme, com curvas indescritíveis, serpenteando por uma estradinha de interior mineiro, infinitamente mais estreita que qualquer veículo que ousasse desafiar o bom senso. Milagres existem.
A lembrança de Vargas Llosa me acompanhou quando encontrei o Pacífico, praias cinzentas circundadas por morros andinos, pedras substituindo a areia.
Ah, ela esteve ao meu lado nos museus – tantos! – , entre eles o Rafael Larco Herrera, com uma coleção de arte erótica indígena – em cerâmica –, viagem surpreendente às mais remotas origens da civilização inca.
No entanto, ainda que presente em todos esses lugares, foi no meio das ruas, no movimento desordenado de um trânsito freqüentemente caótico, que a lembrança me visitou com cores definidas, quase reais.
Com quase nove milhões de habitantes e um transporte público urbano visivelmente deficiente – linhas de trens de superfície ainda sendo planejadas, táxis raros –, o que mais se via em Lima eram micro ônibus que, em alta velocidade, paravam repentinamente, desde que o motorista e seu ajudante percebessem algum sinal, de algum pedestre.
O ajudante de motorista viajava sempre na frente, entrada e, ao mesmo tempo, saída do ônibus.
Em pé, na porta, cabeça pra fora, corpo inclinado, pendurado, quase caindo, com a mão esquerda – invisível para quem estava na rua – ele se segurava. Com a direita, batia na lataria do carro e gritava uma séria quase infindável de nomes.
Nomes de ruas, deduzi.
Como os micro ônibus não possuíam indicações de roteiros, os pedestres se decidiam à medida em que iam ouvindo aquela ladainha.
A ladainha e o sotaque peruano – bom de ouvir, difícil de entender – repetiam, todos os dias, o tempo todo, nomes e nomes. Não apenas de ruas, continuei deduzindo, mas também – certamente – de bairros, vilas, povoados, cercanias.
Pois era a ladainha que me trazia, quase real, a imagem de Vargas Llosa, nascido no sul, Arequipa.
Os nomes e nomes variavam, mas havia um que jamais faltava.
– Venga, Miraflores, San Isidro! Venga, Arequipa, venga, venga!
– Venga, San Cristóbal! Plaza de Armas, Arequipa, venga!
– Venga, Barranco, Catedral, venga! Arequipa, Arequipa!
– Venga, Costa Verde, Arequipa! Venga, venga!
Desde a primeira vez, a cantilena, que se tornaria mais e mais familiar, me fez lembrar que eu tinha um amigo nascido em Arequipa. Amigo de longa data, longas conversas. Desde o primeiro livro. O segundo. De novo, o primeiro. Livro bom, a gente repete. Se possível, decora.
Eu decoraria, além dos livros, os artigos que Vargas Llosa tem publicado, ao longo da vida, no mundo todo. Artigos políticos, coerentes, consistentes, instigantes. Intrigantes. Latino-americanos, universais.
Ontem, com a notícia do Prêmio Nobel, me lembrei de Lima, Cuzco, Machu Pichu. Arequipa.
Fui à estante, abri um dos livros desse amigo fiel, que nunca vi e, tão baixinho que nem sei se ele foi capaz de ouvir, disse-lhe:
– Venga, venga! Quem sabe, dessa vez, te decoro?
Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma. Outubro de 2010