O meu irmão mais velho se chamava Plínio. No início de sua mocidade, flertou com o integralismo. Passou boa parte de sua vida sendo chamado de “galinha verde” – o apelido pespegado pelos comunistas aos seguidores de Plínio Salgado, após o confronto de outubro de 1934, na Praça da Sé, em São Paulo. Na ocasião, os comunistas se armaram e puseram a correr os integralistas. Na refrega, caíram mortos os “galinhas verdes” Spinelli e Jaime Guimarães.
Foi com a lembrança saudosa de Plínio da Cunha Soares que adentrei em Plínio Salgado, Meu Pai (Edições GRD, São Paulo, 498 págs., R$ 55,00) – a biografia escrita por Maria Amélia Salgado Loureiro. Em 1955, Plínio Salgado, do então Partido de Representação Popular, o PRP, obteve 715 mil votos na eleição presidencial, ficando em quarto lugar. Juscelino Kubitschek, do PSD-PTB, venceu a disputa, com 3 milhões e 80 mil votos, entre eles o de meu irmão. O general Juarez Távora, da UDN-PDC, ficou em segundo lugar, com 2 milhões e 610 mil votos, e Adhemar de Barros, do PSP, em terceiro, com 2 milhões e 22 mil votos.
Paulista de São Bento do Sapucaí, nos contrafortes da Serra da Mantiqueira, esse homem – retratado com impiedade pela historiografia engajada e cuja reabilitação a filha tenta neste livro -, nasceu em 22 de janeiro de 1885, e morreu em São Paulo, em 8 de dezembro de 1975.
Inscritos
Nos anos 30/40, dezenas de milhares de pessoas espalhadas pelos quatro cantos do País passaram pelas fileiras da Ação Integralista Brasileira (AIB). Nomes famosos não faltam nos registros da autora. Alguns melhoraram sua biografia com o passar do tempo, mas outros certamente a pioraram. Em agosto de 1935, um balanço feito pela AIB informa que a organização já dispunha de 1.123 núcleos organizados em 548 municípios e 400 mil adeptos devidamente inscritos em seus quadros.
De sua fundação, no fim dos anos 1920, a seus estertores, no fim da década de 1950, o movimento integralista deixou poucos rastros no Brasil contemporâneo. Seu conteúdo doutrinário, cuja idéia-força era a defesa de Deus, da Pátria e da Família, não resistiu aos novos tempos que adviriam com a derrocada dos nazistas e dos fascistas na 2.ª Guerra Mundial.
Foi um fenômeno típico da luta ideológica que contaminou todo o Ocidente naqueles anos. De um lado, o fascismo e o nazismo; do outro, o comunismo e, como contraponto, os chamados liberais. Os liberais abarcavam gente vária.
Desde os chamados puros (como se convencionou denominar os defensores do laissez faire, laissez passer da revolução burguesa, na França de 1789), aos liberais defensores das liberdades públicas ( liberdade religiosa, liberdade política, liberdade de opinião – princípios inspiradores da Revolução Americana, de 1776, que precedeu a Revolução de 1789), aos liberais-sociais.
Século XIX
Estes, por sua vez, têm uma história antiga que remonta às primeiras comunidades cristãs e desemboca no socialismo fabiano do rico século XIX. Os partidos sociais-democratas do mundo contemporâneo procuram exprimir essa busca de mudança sem revolução. E, naquelas décadas que se sucederam à 1.ª Guerra e culminaram com a 2.ª, era difícil não tomar partido. Poucos permaneceram imunes aos germes ideológicos que se espalharam pelo mundo de então.
Os integralistas se anunciavam como o novo – contra os fascistas, contra os comunistas e contra os liberais. Em 1930, durante sua visita à Itália, Plínio Salgado teve um encontro com Mussolini, que a filha omite em seu livro. E o que se viu, por aqui, foi um arremedo do que Mussolini vinha fazendo na Itália desde 1922, quando empolgou o poder. Os integralistas tinham em Plínio o seu Duce. Usavam fardas, erguiam o braço em saudação ao chefe, como o faziam os camisas negras italianos e, alguns anos depois, os camisas pardas de Hitler. Tinham até o seu grito de guerra: “Anauê”, que na língua tupi significa “eis-me aqui”, e o seu símbolo, o “Sigma”, que em cálculo integral representa “soma”. Como não nos lembrarmos do feixe fascista e da suástica nazista?
Inspirações
Eram muitas as coincidências, e as inspirações, para que o integralismo tupiniquim deixasse de ser comparado ao fascismo inventado por Benito Mussolini e levado ao paroxismo por Adolf Hitler. Com sua visceral pregação anticomunista, o movimento integralista entusiasmou setores da Igreja Católica. E sua tentativa de reinvenção do País seduziu intelectuais, militares e empresários de renome. Mas seu contingente mais amplo provinha de setores da classe média brasileira.
Em sua História Concisa do Brasil, o professor Boris Fausto anotou:
“Integralistas e comunistas se enfrentaram mortalmente ao longo dos anos 30.
Os dois movimentos tinham entretanto pontos em comum: a crítica ao Estado liberal, a valorização do partido único, o culto da personalidade do líder.
Não por acaso, houve certa circulação de militantes que passaram de uma organização para a outra.”
Boris Fausto ressalta, contudo, que a disputa entre as duas militâncias não nascera de um mal-entendido, já que cada um deles mobilizava interesses bem diferentes. Os integralistas se fincavam em sentimentos conservadores, como a família, as tradições nacionais, a Igreja Católica. E nunca deixaram clara sua condenação ao anti-semitismo que já grassava entre fascistas e nazistas.
Ressalte-se que, até meados do século 20, católicos viam o povo judeu como deicida, esquecendo-se de que Jesus Cristo nascera e morrera judeu.
Já os comunistas propugnavam pela luta de classes, pelo combate ao imperialismo, pela crítica à religião e pela superação das superestruturas, segundo a dialética de Marx e Engels. Melhor aparelhados para o combate ideológico e para a abertura de frentes entre intelectuais, estudantes e o movimento operário, os comunistas empreenderam uma vigorosa campanha de desmoralização dos “camisas verdes”. E o sigma transformou-se em estigma.
Sedução
Em seu livro JK, O Artista do Impossível, Cláudio Bojunga nos remete àqueles anos de contaminação ideológica. E reproduz a constatação feita por Darcy Ribeiro: “Os aspectos sociais do fascismo provocaram muito interesse no Brasil. O movimento integralista é o primeiro que formula uma política claramente nacionalista, uma política para se contrapor aos interesses da Inglaterra. O governo getulista publicava textos anti-semitas sobre a batalha do petróleo e que foram muito importantes. Na década de 30, na minha opinião, foi muito difícil resistir ao integralismo, que tinha um discurso muito bom. Tanto que foi capaz de atrair homens como D. Hélder Câmara, San Tiago Dantas, Alceu Amoroso Lima e Gerardo de Melo Mourão.
Getúlio tomou do integralismo a preocupação social. Um passo maior seria a criação do Ministério do Trabalho e a instituição das leis trabalhistas pelo ministro Lindolfo Collor.” (A legislação referida por Darcy Ribeiro foi copiada da imposta por Mussolini aos italianos.) Lembra Antonio Candido, em seu Teresina e Seus Amigos, que depois da 1.ª Guerra o fascismo surgiu como o fato novo que balançou muita gente de esquerda: “Um velho comunista italiano de Poços (de Caldas), que fora militante socialista desde a mocidade, dizia que durante algum tempo ele e outros pensaram tratar-se de um tipo diferente de socialismo radical.”
A iconografia de Plínio Salgado, exibida no livro, mostra-nos um homem de “triste figura”, como o anti-herói de Cervantes. E é sua filha quem o confirma. Em 1928, eleito deputado estadual pelo então PRP (Partido Republicano Paulista), desencantou-se com o panorama com que deparou.
“Desejava uma transformação de processos políticos na grei dos dirigentes da nacionalidade. Sentindo a crise que se precipitava, Plínio Salgado tentava a façanha absurda e quixotesca de advertir o governo nos seus próprios arraiais”, escreveu a filha. Para completar mais adiante (páginas 156 e 157): “Redundou vão esse esforço e o nosso D. Quixote, como mais vezes haveria de acontecer, fracassou diante de realidades cruéis.”
Plínio Salgado apoiou a Revolução de 30 e não aderiu à Revolução Constitucionalista de 32. Seus seguidores tinham um projeto de Estado forte, como o instalado por Mussolini, na Itália. Em 1937, conseguiram seu objetivo, com a instalação do Estado Novo. Só que às avessas. Os integralistas se julgavam íntimos do poder, mas ignoravam o maquiavelismo de Vargas.
O fracasso da Intentona Comunista de 35, municiou os seguidores de Plínio.
Era a revanche da Praça da Sé. Instigados por Getúlio, recrudesceram a campanha anticomunista e forjaram, em setembro de 1937, o chamado Plano Cohen, de autoria do então capitão integralista Olímpio Mourão Filho (o mesmo que, já general, deu a partida para o golpe militar que derrubaria João Goulart, em 1964).
O plano entrava em detalhes sobre uma fantasiosa conspiração comunista em andamento, cujas conseqüências redundariam no massacre de padres, incêndio de igrejas, invasão de lares, saques e expropriação de propriedades. A propaganda getulista cuidou de divulgar o documento, dando-lhe foros de verdade. Era um dado a mais para municiar Vargas em seu projeto de abarcar o poder sem limites. Os integralistas imaginaram-se, então, condôminos da nova ordem que se seguiria. Com efeito, em novembro de 1937, e apoiado pelos integralistas, Getúlio decretou o Estado Novo. Impôs nova Constituição, a chamada Polaca, redigida por Francisco Campos, também adepto do integralismo.
Plínio Salgado pleiteou, sem sucesso, o cargo de ministro da Educação.
Frustrados com o veto a seu líder, os integralistas se transformaram em opositores do ditador. E, em maio de 1938, pegaram em armas e partiram para o quixotesco ataque ao Palácio Guanabara, a residência de Vargas. O ataque foi um fracasso monumental, com vários integralistas tombando mortos nos jardins do Guanabara.
Injustiça
Em seu livro, Maria Amélia assinala a “tremenda injustiça” de atribuir ao pai a chefia intelectual do ataque ao Guanabara. “Plínio, como se viu, só soubera da rebelião praticamente na hora dela eclodir” (pág. 244). Seguiu-se a repressão aos integralistas, mas não tão dura como a movida aos comunistas após a Intentona de 35, e recrudescida com o falso Plano Cohen.
Plínio conseguiu permanecer no País até junho de 1939. Driblou por um bom tempo a polícia política getulista. Deve ter contado com a ajuda de discípulos fiéis que se mantiveram incrustados no aparelho estatal, especialmente no Exército e na Marinha. A Aeronáutica ainda não fora criada.
Foi preso naquele mês, junho de 39, e conduzido à Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Semanas depois, foi autorizado a partir para Portugal, onde permaneceu exilado até 1946.
Em seu retorno, a chefia da Nação já estava nas mãos do general Eurico Gaspar Dutra, cuja eleição contou com o seu apoio, articulado do exílio.
Argumentava, então, que o outro candidato, o brigadeiro Eduardo Gomes, acercara-se da “esquerda democrática” – movimento que resultou na criação de antípodas, a UDN (União Democrática Nacional) e o PSB (Partido Socialista Brasileiro). Mas em 1950 marchou com o brigadeiro, contra Getúlio.
Manifesto
O líder integralista participou da Semana de Arte Moderna de 1922. Nacionalista exaltado, foi um dos líderes de dois movimentos que se seguiram à Semana 22 – o “Verde-Amarelismo” e a “Revolução da Anta” (1926), que deram origem à Sociedade de Estudos Políticos (a SEP), o embrião da Ação Integralista Brasileira. No Manifesto Integralista, de outubro de 1932, alguns dos princípios ali expressos guardam semelhança com os do fascismo.
“Somos pela implantação do princípio da autoridade, desde que ele traduza forças reais e diretas dos agentes da produção material, intelectual e da expressão moral do nosso povo”, diz um deles. É uma defesa das câmaras corporativas mussolinianas. E este outro: “Somos contrários a toda tirania exercida pelo Estado contra o indivíduo e suas projeções morais; somos contra a tirania dos indivíduos contra a ação do Estado e os superiores interesses da Nação.” É o Estado se sobrepondo à pessoa, sob a mesma justificativa dos bolchevistas.
Advogado e jornalista, Plínio Salgado escreveu ensaios e romances, entre os quais O Estrangeiro, O Esperado, Vida de Jesus. Os textos autobiográficos reproduzidos no livro da filha mostram qualidade literária, especialmente os dedicados à infância em São Bento do Sapucaí e ao exílio em Portugal.
Nos dias que passam, a AIB permanece na memória de uns poucos e em registros incompletos da historiografia contemporânea. Neste sentido, a obra de Maria Amélia merece ser consultada. Quando menos para servir como contraditório e favorecer uma análise mais objetiva de fatos da nossa história política e de seus protagonistas.
Este artigo foi originalmente publicado em O Estado de S. Paulo