Mente cativa

Na epígrafe de seu notável livro Mente Cativa, o escritor e poeta polonês Czeslaw Milosz, prêmio Nobel de Literatura de 1980, citou esta máxima, atribuída a “um velho judeu da Galícia”:

“Quando alguém está honestamente 55% do tempo certo, isso é muito bom e não faz sentido discordar. Se alguém está 60% certo, isso é maravilhoso, sinal de boa sorte e essa pessoa deve agradecer a Deus. Mas o que deve ser inferido sobre estar 75% certo? Os sábios diriam que é algo suspeito. Bem, que tal 100% certo? Quem quer que diga que está 100% certo é um fanático, um criminoso e o pior tipo de crápula”.

O livro de Milosz é um documento notável sobre um período da vida de um intelectual que viveu sob o totalitarismo comunista na Polônia do pós-guerra. Ele reúne uma série de ensaios onde ele conta, escondendo sob pseudônimo o verdadeiro nome das pessoas, a história de alguns intelectuais que originalmente não tinham afinidades ideológicas com o partido dominante, e aos poucos foram sendo cooptados por um sistema que não deixa brechas à autonomia de consciência, nem estética e nem política. Ou, para usar as próprias palavras de Milosz, no livro ele procura “criar separadamente os estágios sobre os quais a mente dá passagem à compulsão do nada”.

No livro, Milosz, que nasceu num território que hoje pertence à Lituânia, conta que viu a chegada do Exército Vermelho à Polônia como uma libertação das atrocidades nazistas e serviu ao governo instalado pelos comunistas como diplomata. Em 1951, pediu asilo na França, onde escreveu Mente Cativa, que foi criticado pelos comunistas, que o acusaram de traidor, e pelos direitistas, que o acusaram de tentar entender o regime, em vez de apenas acusá-lo.

Dos nove ensaios do livro, Milosz dedica quatro à narrativa da história dos escritores e poetas que ele chama de Alfa, Beta, Gama e Delta, que conheceu de perto. Ele mostra de que maneira a metafísica do regime totalitário vai envolvendo e se apossando da consciência das pessoas, até fazer com que percam a referência intelectual e passem, como diz o autor, a fazer parte do “universo de sombras ambulantes”.

A história dos totalitarismos que avançaram pelo Leste Europeu e outras partes do mundo no século passado, seus anos de domínio e sua derrocada, já foi contada e recontada em livros de História. Mas poucos, como George Orwell e Arthur Koestler, se ocuparam da maneira como se dá a dissolução das consciências. Por isso, o livro de Czeslav Milosz é indispensável, não apenas para rever o passado, mas para iluminar o presente.

A tentação totalitária continua por aí, reciclada em várias fórmulas novas e em receitas mágicas, que prometem a felicidade sobre a terra, ao custo básico da renúncia à liberdade de consciência, oferecendo em troca rios de leite e mel que nunca se concretizam.

É um bom momento para ler Mente Cativa e refletir sobre o quanto temos a aprender com a sabedoria do velho judeu da Galícia.

Julho de 2010.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat.

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