Uma onça no pomar

Nos velhos filmes de Tarzan com Johnny Weissmüller, o ruído de um hidroavião monomotor a passar sobre os domínios do Homem Macaco era, em geral, prólogo de boa aventura. Foi isso que senti anteontem quando, atento a ajeitar a linha de pesca, em busca do almoço, escutei o ronco. Absolutamente inusitado por aqui, absolutamente inédito. Olhei para o alto e vi o aparelho fazer habilidosa curva diante de minha choupana. Para em seguida descer mais e tocar a mansa superfície da baía. Depois veio e encostou no pequeno trapiche de madeira que eu mesmo ergui.

O camarada que saiu do aeroplano, funcionário da Capitania dos Portos do Pará, se plantou diante de mim e narrou o seguinte: do lado desabitado da ilha, que, como já contei, possui apenas outro morador além de mim, certo barco que transportava cirquinho mambembe, como fazem os caminhões em São Paulo, bateu, durante impressionante tempestade que despencara na véspera, em grande tronco que flutuava na correnteza. Com o impacto, robusta onça presa em gaiola que se encontrava no convés de proa assustou, arrebentou a grade de madeira e pulou n’água. Nadou em direção à ilha, onde sumiu no meio da vegetação.

– Até que a gente ache o bicho – falou o cara do avião –, tenha cuidado. Pois uma onça, afinal, é sempre uma onça…

Pronto, assim foi que de repente, não mais que de repente, me vi envolvido pela perspectiva de algo cinematograficamente palpável. Ora, amigos, vamos e venhamos, se eu fosse o lendário fazendeiro e escritor Rodolfo Steiner, acostumado a, nas brenhas próximas à sua fazenda em Marajó, enfrentar no braço os enormes felinos que no passado atacavam seus bois, talvez soubesse como agir. Mas treinado apenas a brandir essa caneta que me dá, a duras penas, o ganha-pão, confesso que fiquei apavorado. Não a ponto de pedir carona para o súbito piloto, a fim de encontrar local seguro nas beiras do continente. Com olhar de funda angústia e cava depressão, gemi:

– E se o bicho aparecer, o que faço?

– Corra. Tranque-se em casa e, se tiver uma arma, será a hora de usá-la.

Cocei a cabeça, o pescoço, ajeitei a bermuda e nem disse que possuo sim uma arma, até boa, que me teria feito votar no “não” caso estivesse em Campinas quando daquele plebiscito idiota que fizeram faz algum tempo. Por via das dúvidas, liguei todos os meus sentidos – não me animaria, sequer, a atravessar o pomar.

 Como faço sempre depois do almoço, tive, desta vez, o cuidado de trancar a casa para tirar morna perereca. Sequer fechara os olhos no instante em que ouvi o rugido. Saltei para o meio do quarto com insuspeitada agilidade, peguei a espingarda. Abri então a janela e dei de cara com o bicho. Um onção, amigos, um onção e tanto. Que, porém, assim que me viu, lançou em minha direção quase aquoso olhar que classifiquei como de súplica. Foi quando ecoou o berro de seu Pluéricles, o caseiro:

– Pegue um pedaço de carne-de-sol e jogue pra ela!

Obedeci para vê-la comer com feroz sofreguidão. Enquanto isso o funcionário, como se fosse mágico, atirou um laço que pegou no animal pelo pescoço.

– Jogue mais carne, frango, queijo, pão, o que tiver! – ordenou.

Com a ponta da corda agora amarrada a uma árvore, ficamos olhando. E vimos, surpresos, o bichão bocejar e cair no sono ali mesmo, assim que sentiu a barriga cheia.

Por mim, teria ficado para sempre com a onça, a quem já batizara como “Dona Marisa Letícia”. Mas o homem do avião voltou, então de barco, com pessoas munidas de armas que disparavam dardos com sonífero. Vazou, com largo sorriso, grata surpresa ao ver o animal preso ao tronco. E assim findou aquela que poderia ter sido a maior aventura por mim já vivida nesta ilha na foz do Rio Amazonas. Jogaram areia no meu sonho de Tarzan…

Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular

Um comentário para “Uma onça no pomar”

  1. Caríssimo Contente. Sugiro que, além de suas saborosíssimas crônicas, você escreva um diário. Sucesso garantido. Estarei no primeiro lugar da fila de autógráfos. Quanto a este episódio, seu azar foi o funcionário da Capitania ser amigo da onça…

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