A tortura é um dos crimes mais hediondos e uma das manifestações mais degradantes e covardes da natureza humana. Mais grave ainda quando praticada por agentes de Estado que subjugam e humilham fisicamente uma pessoa indefesa a pretexto de obter confissões ou informações, seja dentro de um quadro de conflito político, seja em uma investigação criminal de qualquer natureza.
Estabelecida essa premissa, para que não restem dúvidas, ficam ainda mais fortes os motivos para admirar as razões que levaram o ministro Eros Grau a votar, com argumentos contidos num contundente relatório de 61 páginas, na tese de que a Lei de Anistia promulgada em 1979 e confirmada pela Constituição de 1988, não é passível de revisão pela Justiça- no que foi acompanhado por outros 6 juízes.
A primeira razão para admirar o voto: Eros Grau não é um reacionário de má história. Ele mesmo,que já se declarou marxista, foi preso e torturado durante o regime militar, o que não afetou a isenção técnica de seu julgamento.
A segunda razão para admirar o voto: ele mantém o princípio da segurança jurídica, o que é um dos esteios de um legítimo Estado de Direito.
É estranho e irônico que certos segmentos da sociedade, que criticaram a decisão do STF, sejam os mesmos que criticam o excessivo protagonismo da Justiça, e que protestam contra a “judicialização” da vida política do País.
O voto de Eros Grau , para quem se der ao trabalho de lê-lo, não é um voto pró-tortura, mas sim um voto a favor do pleno Estado de Direito.Ele argumenta que a Lei da Anistia foi pactuada entre sociedade e governo, e resultou ser recíproca pela vontade manifesta das duas partes, e referendada pelo Congresso.
Alegava a OAB em sua petição que o regime, em 1979, quando a lei foi promulgada, não era plenamente democrático, e que em função dessa desequilibrada relação de forças políticas, o governo acabava auto-anistiando os seus agentes acusados de crimes contra a Humanidade, como a tortura.
Eros Grau tinha fortes argumentos contra a petição da OAB: se a alegação de que a lei foi aprovada por um Congresso pouco independente fosse válida, toda a legislação do período autoritário teria que ser revogada; quando a Lei da Anistia foi aprovada, ainda não existia a lei que tornava a tortura crime inafiançável e não-anistiável, promulgada em 1997, e nem a Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,que só entrou em vigor em junho de 1987.Leis não retroagem,como se sabe. E mais: a Lei da Anistia foi revalidada pela Emenda Constitucional nº 26, que convocou a Assembléia Nacional Constituinte, ou seja, durante a plena vigência do regime democrático.
O ministro defendeu um princípio constitucional básico, em cima do qual construiu a arquitetura de seu raciocínio: “No Estado democrático de Direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar,a dar outra redação,diversa da nele contemplada,a texto normativo.Pode, a partir dele,produzir distintas normas.Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a reescrever leis de anistia”.
Aos que argumentam com o fato de outros países da América Latina, como Uruguai, Chile e Argentina terem conseguido punir os seus torturadores,Eros Grau mostra que a “Lei de Obediencia Devida”, “Lei de Caducidad de La Pretensión Punitiva”, a “Lei del Punto Final” e outras, tiveram origem no Legislativo desses países, e não foram impostas por interpretação judiciária.
Enfim, o que a decisão do STF mostrou é que se a sociedade brasileira deseja revogar uma parte da lei de anistia e punir um dos lados em conflito, é preciso que o faça através dos meios que o estado democrático de Direito lhe faculta: por uma lei elaborada e aprovada pelo Congresso.
Por isso, a decisão do STF não defende a tortura. Defende a lei.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat