Um dia, vendo um de meus filhos extasiados diante do aparelho preferido, não resisti:
— Até parece que você nasceu vendo televisão, filho.
O troco veio logo depois, quando ele me viu diante do computador:
— Até parece que você nasceu escrevendo, mãe.
Ainda que eu não saiba quantas vezes a gente é capaz de nascer, naquele momento me lembrei – com detalhes – do dia em que nasci escrevendo.
A aula de Português chegava ao fim, quando aquelas adolescentes dos anos 50 ouviram, atentas, um soneto ser lido em voz alta. O último verso, questionador, indagava de que maneira uma criança, sendo pobre, ousava sonhar com um presente de Natal.
O nome do soneto perdeu-se no tempo, o de seu autor também.
Impossível, no entanto, esquecer a voz serena que, naquele dia, transformou a leitura emocionada do soneto em tarefa desafiadora:
— Como lição de casa, vocês vão transformar este poema em prosa. E trazer na próxima aula.
Naquela tarde, no salão de estudos do internato, não me incomodei com a presença da freira que, com rara competência, vigiava nosso silêncio diário. Silêncio obrigatório e monótono, em que nada – absolutamente nada – acontecia. Não me lembro se, algum dia, alguma mosca terá voado.
Naquela tarde, escrevendo e reescrevendo, alheia à freira de cara sisuda e passos firmes, comecei a perceber alguns mistérios guardados nos pensamentos mais escondidos. Reticências, vírgulas, parágrafos. Inúmeras interrogações. Quase ausência de pontos finais.
No dia marcado, tarefas entregues, a professora de olhar terno levou tudo pra casa.
Na aula seguinte, um a um, entregou todos os trabalhos. Todos, menos um, que – voz emocionada – deixou para ler, no final.
Ao me dar conta de que um texto meu podia ser lido em voz alta, pela professora, a classe inteira ouvindo, comecei a desconfiar de que a palavra escrita abrigava segredos. E talvez gerasse felicidade.
O correio acaba de me trazer uma carta de D. Dulce Costa, professora de Português que iluminou e clareou meus dias adolescentes em São João del-Rei. Meus escritos também.
A letra conhecida afirma, de maneira afetuosa, que ela costuma ler estas crônicas.
Não me surpreendo. Tanto tempo depois, fiel, ela segue lendo, soletrando. Decifrando a aluna. Ensinando sem querer. Emocionando à distância. Fazendo o tempo parar.
26/5/1991
As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.