Respeitem o livrinho

Vinte e quatro anos depois do golpe militar e político que nos afundou em uma ditadura, reestabelecido o poder civil, os brasileiros se concentraram na elaboração de uma nova constituição, democrática, para o país.

Era o ano de 1988 e todos tiveram oportunidade de sugerir, opinar, ter sua voz ouvida. O clima de liberdade que se sentia no ar das cidades se refletiu em Brasília. A memória do autoritarismo recente, ferida que ainda não cicatrizara, fez com que se cuidasse com muito carinho e atenção do capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos. Os direitos humanos passaram a ser a idéia chave a comandar os trabalhos constituintes.

A lembrança dos curtos e violentos artigos dos atos institucionais dos tempos ditatoriais, e a visão de que era necessário prever tudo, nos levou a uma Constituição extensa, que trata de assuntos que poderiam ser resolvidos pela legislação comum. A constituição-cidadã, proclamada por Ulysses Guimarães, significou o anúncio de novos tempos e esperanças.

O sonho foi maior do que a realidade, mas, livre, o Brasil melhorou muito.

Gosto especialmente do artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. É o que nos garante a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade. E que não pode ser modificado, considerado que é cláusula pétrea. Intocável, imexível, inalterável.

As pessoas, em geral, não atentam para a importância desses textos para a nossa existência cotidiana. São a expressão de conquistas da humanidade, do ser humano contra todo tipo de opressão. O respeito ao livrinho significa a concordância de todos com os princípios que devem imperar na nossa convivência em sociedade. A Constituição é a bíblia do cidadão e tem, para protegê-la, o Supremo Tribunal Federal. Rezo nessa escritura sagrada.

Me incomoda uma onda que percorre a América Latina, acionada pelos poderosos de vários países. Com a intenção de se perpetuarem no comando de seus povos, propõem plebiscitos e otras cositas más para mudar as regras nacionais de acordo com suas conveniências.

Aqui no Brasil isso não tem prosperado, apesar de surgirem sempre opiniões sobre miniconstituintes a serem feitas por maioria simples. Incomoda aos falsos democratas a necessidade de se juntar três quintos dos votos na Câmara e no Senado, em dois turnos, para se aprovar qualquer mudança no que foi estabelecido em 1988, no momento em se saía do autoritarismo em busca da justiça e da liberdade.

Agora mesmo, fato horroroso para o legislativo brasileiro, aprovou-se uma série de emendas constitucionais por votação simbólica ou melhor, sem voto, sem o quórum necessário. Se o Legislativo faz isso e o Executivo, por seu lado, ameaça não respeitar as cláusulas imutáveis do livrinho, precisamos ficar atentos, prontos para combater esse desrespeito junto ao STF.

Julho de 2010.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas.

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