Premiado no Festival Paulínia de Cinema de 2009 como melhor documentário, Só dez por cento é mentira tem conquistado elogios e aplausos onde é exibido. Pedro Cezar, seu diretor, fez um filme lúdico sobre o recluso Manoel de Barros, poeta sul-mato-grossense respeitado nacional e internacionalmente como um dos mais originais do século passado e mais importantes do Brasil.Elogiada por Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa, sua obra aparentemente simples é instigante, repleta de originalidade e busca inspiração no olhar encantado das crianças e nas coisas corriqueiras e “desimportantes” do mundo.
Manoel de Barros faz releituras surpreendentes, confere novas dimensões a objetos, traquitanas e “inutensílios”, valoriza personagens que encantam por seu despojamento, brinca com as palavras e se insurge contra a fixação unilateral e obsessiva em produção e produtividade, uma característica das sociedades contemporâneas, celebrando as “inutilezas”.
A reinterpretação das noções correntes de verdade e invenção começa pelo título do filme, que se refere a como Manoel de Barros vê sua obra: “Noventa por cento é invenção; só dez por cento é mentira”. E explica para quem fique intrigado com a inusitada distinção: “A invenção é um negócio profundo. Serve para aumentar o mundo”. Para ele, todo poeta é um “vidente”, dotado de um olhar inevitavelmente “enviesado” das pessoas e coisas que o cercam, e chamado não a descrever, mas a descobrir e ampliar o universo.
Aos 93 anos, o poeta desconcerta ao afirmar que até hoje só teve infância e, portanto, escreve “apenas” sobre ela. Depois dos 70, acrescenta, garantiu o ócio e ingressou no que chama de “terceira infância”, passando a produzir mais. Para quem duvide, o filme mostra que ele avançou na vida sem deixar de ver o mundo com o olhar perquiridor e desinibido das crianças, convencido de que os objetos não se restringem a seu significado literal. “As coisas”, adverte, “não querem ser vistas por pessoas razoáveis.”
Declara ser poeta em tempo integral: “Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às seis horas da tarde”. Acolhe de bom grado as limitações do homem: “A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito”. Talvez por isso o filme se declare como sendo uma “desbiografia” do poeta e faça o elogio do “des-herói”, termo do autor para qualificar personagens que estão na contramão do convencional, a exemplo do vagabundo de Charles Chaplin – um “herói ao contrário”.
O resultado é um mergulho estético e arrebatador na obra de Manoel de Barros. A fotografia e a música – onde predomina a viola – reforçam as reminiscências do Brasil pantaneiro. As imagens são poéticas, frases e versos do escritor são inseridos na tela como nos cadernos que ele mesmo confecciona e escreve a lápis, “em caligrafia miúda”. Ficam evidentes a sensibilidade, mas também o empenho, a lapidação e a paciência com que o poeta constrói seus poemas.
O documentário apresenta depoimentos de escritores, cineastas, atores, artistas plásticos, parentes e amigos do poeta. Mas seu grande feito é ter conseguido entrevistar o próprio Manoel de Barros, conhecido por evitar exposição na mídia. Famoso por conceder entrevistas somente por correspondência, Manoel resistiu a autorizar a gravação de seu depoimento. Para Pedro Cezar, “ele não nega contato com as pessoas. Só não gosta de ser registrado oralmente”. E repisa: “Ele sempre recebe gente em sua casa, conversa numa boa. Só pede para que não seja gravado”. Afinal, “poesia não é para compreender, é para incorporar”, argumenta o poeta, enfatizando que ela pode estar em qualquer canto, bastando apenas focalizar um olhar desprovido de regras e pressupostos – como o das crianças – para enxergá-la.
O cineasta conseguiu fazer a entrevista porque, depois de muita insistência, afirmou que era melhor deixar para lá, afinal o desejo de fazer o filme era “só um sonho”. O velho poeta, sabedor da importância dos sonhos, se rendeu e o documentário pôde virar realidade. “Venha amanhã bem cedo, pode fazer as perguntas. Se eu me interessar, eu respondo”. Respondeu a todas e Pedro Cezar soube aproveitar a oportunidade.
Cenas inspiradas e imprevistas. Manchas nas paredes sujas que se transformam em desenhos cheios de significado e lirismo. Pneus que, das fábricas e dos carros, vão parar nas mãos de garotos que os utilizam como balanços, ou os convertem em bóias para brincar num lago, ou os jogam de um para o outro num final de tarde, ao “lusco-fusco” – momento sempre carregado de mistério, que enternece e confunde, à semelhança da poesia de Manoel de Barros, que desvenda novas leituras de matérias densas, mas cheias de disfarce. Um filme que honra a qualidade do biografado e confirma a magia e o encantamento da arte de fazer cinema e de assisti-lo.
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