Não se mata um pássaro que só faz o bem

Há pessoas que parecem escrever um livro por semana – e, no entanto, somem na poeira da história, menores que o cocô do cavalo do bandido. Nelle Harper Lee escreveu um único livro, e firmou-se como uma das grandes escritoras do século XX.

Criou um personagem absolutamente fascinante, um homem que é sinônimo de integridade, de bom caráter, de retidão moral. Atticus Finch é um dos personagens da literatura que mais me impressionaram, desde que li O Sol é para Todos pela primeira vez e vi o filme baseado no livro, quando era adolescente, em Belo Horizonte, nos anos 60. Acho que, depois da minha mãe, Atticus Finch foi a pessoa que mais me ensinou sobre caráter, honestidade, honra, justiça.

Ao reler o livro agora, na nova edição da José Olympio (de 2006, na foto; a edição anterior, dos anos 60, era da Civilização Brasileira), emprestada por minha filha Fernanda, que releu antes de mim, fiquei especialmente impressionado por três coisas específicas – além, é claro, do principal, do óbvio, que é o belo, maravilhoso significado da obra, um panfleto contra o racismo, uma elegia da convivência entre os díspares, os diferentes, uma ode à honestidade, aos bons princípios morais, à democracia, em suma, democracia entendida basicamente como o oposto de qualquer tipo de totalitarismo. Como uma forma de organização da sociedade em que as pessoas são mais importantes que as ideologias e que o Estado.

Uma dessas coisas específicas que me impressionaram é como se mantiveram frescos na minha memória muitos dos detalhes da história, a imensa maioria deles. É verdade que há o filme para ajudar a memória – mas, não, era do livro que eu me lembrava. E isso não é comum. Tenho relido alguns livros que li quando muito jovem, e eles parecem quase uma total novidade. O contrário do que aconteceu com O Sol é Para Todos – no original, To Kill a Mockingbird.

O segundo aspecto impressionante é a beleza do texto – e desta não me lembrava tão bem. Claro, aos 60 anos sou muito mais capaz de admirar um texto bem escrito do que aos 15, 16, embora lá atrás os belos textos já me fascinassem. Harper Lee tem um texto maravilhoso, todo pontuado por pequenas sutilezas, pequenas observações interessantes, imagens de grande criatividade, apresentadas com uma aparente simplicidade.

É uma fascinante mistura de uma narrativa de uma criança com a de uma adulta, uma costura fina entre as duas coisas.

A narradora do livro é uma mulher madura que conta as experiências de sua vida aos oito anos de idade. E essa mistura que ela consegue fazer das duas visões – a da narradora adulta que escreve agora com a da criança que foi no passado –, essa dualidade, essa convivência da criança com a mulher é algo que não me lembro ter visto igual.

A terceira característica impressionante é que Harper Lee levanta um tema tremendamente polêmico: o de que os homens não nascem iguais. O tema é tão vasto, e importante, que falo sobre ele em um outro texto.

         Uma cidadezinha do Sul Profundo, na Grande Depressão

O local da narrativa é uma cidadezinha do Alabama rural, Sul Profundo dos Estados Unidos. O nome da cidade – Maycomb – é fictício. A época é meados da década de 30, os Estados Unidos ainda afundados na Grande Depressão – só na página 263 cita-se o ano exato, 1935. A narradora, Jean Louise Finch, que todos conhecem pelo apelido de Scout, era uma moleca travessa, quatro anos mais nova que seu irmão Jem; usava macacão, sujava-se toda – detestava saias. “Mamãe morreu quando eu tinha dois anos, de modo que nunca senti sua falta”, ela diz, no capítulo 1.

Não resisto à tentação de transcrever um trecho do capítulo 1 em que Scout apresenta sua cidade – e Harper Lee apresenta seu texto trabalhadíssimo, seguramente reescrito diversas vezes, até se chegar ao ponto perfeito de lapidação. A tradução é assinada por Maria Apparecida Nóbrega de Moraes Rego:

“Maycomb era uma cidade velha, mas já era velha e cansada quando a conheci. Em tempo chuvoso as ruas transformavam-se numa papa vermelha; o capim invadia as calçadas e, na praça, o prédio do tribunal se deteriorava. Parece que era mais quente então: os cachorros sofriam nos dias de verão, enquanto as mulas magras das carroças espantavam as moscas na sombra sufocante dos carvalhos da praça. Os colarinhos engomados dos homens amoleciam antes das nove da manhã. As damas banhavam-se antes do meio-dia e depois da sesta das três horas, e ao cair da noite pareciam bolinhos fofos cobertos com um glacê de suor e talco perfumado.

“As pessoas moviam-se devagar naquela época. Passeavam pela praça, percorrendo sem pressa as lojas à sua volta; faziam tudo com calma, não se afobavam por coisa alguma. O dia tinha 24 horas, mas parecia mais longo. Não havia pressa, pois não havia aonde ir, nada para comprar, nem dinheiro para tal. (…)

“Nós – Atticus, Jem e eu, mais Calpúrnia, a nossa cozinheira – morávamos na principal rua residencial da cidade. Jem e eu estávamos satisfeitos com o pai que tínhamos: ele brincava conosco, lia para nós e tratava-nos com cortesia.

“Já Calpúrnia era diferente. Era toda ossos e ângulos, míope e estrábica, tinha a mão larga como uma tábua e duas vezes mais dura. Estava sempre me mandando sair da cozinha, perguntando por que eu não podia me comportar tão bem quanto Jem, mesmo sabendo que ele era mais velho, ou querendo que eu entrasse quando não tinha vontade de fazê-lo. Nossas brigas eram épicas e unilaterais: Calpúrnia sempre ganhava, Atticus sempre ficava do lado dela. Estava conosco desde o nascimento de Jem e desde que eu me tinha como gente sua presença tirânica pairava sobre mim.”

         Pequenos acontecimentos importantes para a garotinha Scout

Que maravilha de texto: no calor, as damas banhavam-se duas vezes ao dia mas mesmo assim “ao cair da noite pareciam bolinhos fofos cobertos com um glacê de suor e talco perfumado”. Eta ferro!

Com esse texto, com esse estilo, essas pequenas preciosas imagens, fantásticos achados, a Jean Louise Finch criada por Harper Lee, vai narrando para o leitor, quando está aí na faixa dos 30 e tantos anos (embora não haja qualquer referência a isso), sua vidinha na pachorrenta Maycomb, quando ela era apenas Scout, tinha oito anos e seu irmão Jem, 12.

Com um texto rico assim, nem seria necessário que acontecessem muitos fatos na vida de Scout para que a narrativa fosse interessante. A escritora de fato consegue transformar em atraentes, fascinantes, as pequenas coisas do cotidiano da garota vivendo na cidadezinha minúscula – mas, além das pequenas coisas, surgem, sim, fatos, acontecimentos, suavemente surpreendentes.

No verão em que começa a história que Scout vai narrar, chega para passar as férias em Maycomb, na casa de sua tia Rachel, vizinha dos Finch, um garoto de fora, de outra cidade, de outro Estado, franzino, pequenino, que está para fazer sete anos. Seu apelido é Dill. Será uma nova atração na vida de Jem e Scout.

A poucos metros de onde moram os Finch, na mesma rua, há uma casa que exerce enorme fascinação sobre Jem, Scout e agora também sobre Dill. Ali vivem os Radley, uma família estranha, diferente: “Os Radley preferiam isolar-se, uma opção imperdoável em Maycomb. Não iam à igreja, principal diversão de Maycomb, fazendo suas orações em casa”. Os Radley tinham um filho agora adulto – Arthur, conhecido pelo apelido de Boo – que jamais saía de dentro da casa. Scout nunca o tinha visto na vida; ouvira contar que, muitos antes anos, Boo havia, sem qualquer motivo, atacado o próprio pai com uma tesoura. O velho Radley recusou-se a mandar o filho para o hospício, ou para qualquer outro lugar, e então Boo ficava ali, dentro de casa, a vida inteira.

Para garotos de sete e oito anos, Boo Radley se transformava num mistério, num monstro, num bicho-papão. Por insistência de Dill, os três garotos tentam inventar mil maneiras de fazer com que algum dia Boo saísse de casa.

Outros acontecimentos, além da existência fantasmagórica de Boo Radley, pareciam absolutamente notáveis para a pequena Scout. Há os primeiros dias de escola, e o total despreparo da professora recém-chegada para entender os hábitos de algumas das crianças da área rural de Maycomb, de famílias assoladas pela miséria da Grande Depressão. Há o aparecimento de um cachorro louco em plena rua dos Finch – e uma atuação de Atticus Finch no episódio que deixa Jem e Scout absolutamente boquiabertos, de queixo no chão. Há um imprevisível inverno rigoroso naquela cidade em que “o verão confunde-se com o outono e muitas vezes este não se transforma em inverno, mas sim numa nova primavera que outra vez se converte em verão” – e, no inverno mais frio que a cidade já enfrentara desde 1885, com as pessoas tendo que ligar fogareiros, uma casa vizinha à dos Finch pega fogo.

Mas, sobretudo, há o julgamento de Tom Robinson.

Tom Robinson é negro. Foi acusado de estuprar uma jovem branca, Mayella Ewell; Atticus Finch é nomeado seu defensor.

         Uns quatro ou cinco brancos da cidade não são racistas

A forma com que Harper Lee trata do racismo, na narrativa da mulher Jean Louise contando como a garotinha Scout enxergava o mundo, é brilhante. Jean Louise narra as experiências de Scout com o racismo da mesma forma com que narra o que ela sabe a respeito do trabalho de Atticus na advocacia, da miséria que circunda Maycomb. Scout estava aprendendo os fatos básicos da vida – e o racismo é um fato básico da vida no Alabama. Quase todos os brancos de Maycomb são racistas – para eles, é praticamente como se a escravidão não houvesse acabado em meados do século XIX, nem um século antes, portanto. Aliás, esse negócio de ter acabado com a escravidão tinha sido coisa dos ianques, dos nortistas – o Sul perdeu a guerra, e teve que engolir à força a decisão dos ianques. Por eles, nada daquilo deveria ter  acontecido, a escravidão deveria ter continuado.

Uns quatro ou cinco brancos não são racistas em Maycomb. Um deles é Atticus Finch.

Viúvo, sem ter uma mulher para administrar sua casa, Atticus se esforçava ao máximo para passar aos dois filhos seus valores básicos – os grandes valores morais. A narrativa de Jean Louise sobre sua vida de Scout revela isso de forma suave, implícita. Lá acima, transcrevi a descrição que Jean Louise-Scout faz de Calpúrnia, a empregada. “Era toda ossos e ângulos, míope e estrábica, tinha a mão larga como uma tábua e duas vezes mais dura.” Há diversos detalhes, mas não há qualquer menção à cor da pele. Para a filha de Atticus Finch – assim como para qualquer pessoa que tenha os valores morais básicos –, a cor da pele não importa, não faz diferença.

Quando, na exata metade do livro, com Atticus fora da cidade (além de advogar em Maycomb, ele tinha também o cargo de legislador na capital do Estado, Montgomery, para onde viajava às vezes), Calpúrnia decide levar Jem e Scout à missa na sua igreja, a igreja dos negros, os garotos não acham nada estranho. Alguns negros, sim, acham esquisito, tentam reclamar – mas o reverendo Sykes intervém e bota ordem no seu rebanho. Os dois garotos brancos assistem à missa no meio da congregação negra sem qualquer incidente.

É tão absurdo, tão inominável, que muita gente – especialmente os mais jovens – pode não se lembrar: nos Estados sulistas, o racismo era legalizado, assim como na África do Sul do apartheid. A segregação, a separação brancos para cá, negros para lá, era garantida por lei. Só em 1964 uma legislação federal – assinada pelo democrata Lyndon B. Johnson – baniu expressamente o racismo no Império da democracia.

         Deveríamos ficar de pé quando passam diante de nós pessoas como Atticus Finch

Durante o julgamento de Tom Robinson, o negro acusado de estuprar uma branca, que está sendo julgado por um júri só de brancos numa cidade de brancos racistas, Harper Lee, através de Atticus Finch, explicita um ponto de vista tremendamente polêmico: o de que os homens não nascem iguais. Trato sobre esse tema, como já disse, em outro texto.

Acho que não é um spoiler, um estraga-prazer, um entrega-o-que-não-pode-ser-entregado dizer que, no julgamento, Atticus Finch tem um desempenho calmo, controlado, como é de seu estilo, mas firme, incisivo, competente. Deixa absolutamente claro, límpido como água da melhor fonte, que Tom Robinson é inocente, não estuprou Mayella Ewell, de forma alguma.

O salão do tribunal já estava totalmente tomado quando Jem e Scout chegam, e assim eles assistem ao julgamento sob a proteção do reverendo Sykes, no lugar reservado aos negros, o balcão superior do tribunal de Maycomb.

O julgamento ocupa seis dos 31 capítulos do livro.

Após o final do julgamento, Harper Lee cria uma passagem extraordinariamente bela, absolutamente emocionante:

“Alguém estava me cutucando, mas eu relutei em tirar os olhos do pessoal lá de baixo e do vulto solitário de Atticus que deixava o recinto.

“ – Srta. Jean Louise?

“Olhei para o lado. Em volta de nós e no outro lado do balcão, os negros ficavam de pé. A voz do reverendo Sykes soou tão distante quanto a do juiz:

“ – Srta. Jean Louise, levante-se. O seu pai está passando.”

         ***

Deveríamos todos ficar de pé quando passam diante de nós pessoas como Atticus Finch.

O doloroso é pensar que há mais Mayellas Ewell e Bobs Ewell do que Atticus Finch no mundo.

         A fictícia Scout tem muito da sua criadora

Nelle Harper Lee nasceu em 28 de abril de 1926, em Monroeville, no Alabama. No censo de 2000, Monroeville tinha 6.862 habitantes. Ou seja: era uma cidade tão pequena quanto a fictícia Maycomb. Em 1935, ano em que se passa a ação do livro, Harper Lee estava, portanto, com nove anos – Scout estava com oito. A mãe de Harper Lee se chamava Frances Cunningham Finch Lee. Finch, como Atticus. O pai, Amasa Coleman Lee, era advogado e foi membro da Assembléia Legislativa do Alabama, como Atticus.

Harper Lee, avessa a entrevistas, nas poucas que deu negou que o livro seja autobiográfico. Mas é óbvio que o livro tem coisas que são autobiográficas. O próprio personagem Dill, o garotinho franzino que passa as férias em Maycomb-Monroeville, é evidentemente – segundo muita gente já comentou – inspirado num amigo de infância e vizinho de Harper Lee, um garotinho chamado Truman Capote. Volta-se a Truman Capote mais adiante.

Quando Dill fica conhecendo os irmãos Jem e Scout, bem no comecinho da narrativa, chega-se aos dois muito metido porque, pouco antes de fazer sete anos, já sabe ler. Jem corta-lhe o barato:

– “A Scout aqui lê desde que nasceu e ainda nem foi para a escola.”

“Lê desde que nasceu” é ótimo. Mas de fato Scout aprendeu a ler bem cedo, no colo de Atticus, enquanto o pai lia algum livro ou um jornal – Atticus estava sempre lendo, quando estava em casa.

Esse é mais um ponto em comum entre Scout e Harper Lee: os relatos são de que a jovem sulista era uma leitora precoce. Fez os anos básicos na sua Monroeville natal, e o colegial na capital do Estado, Montgomery. Estudou Direito na Universidade de Alabama entre 1945 e 1949, mas não completou o curso. Acabou indo para Nova York, em 1950, sem um diploma universitário, onde viveu num pequeníssimo apartamento e trabalhou como funcionária de duas companhias aéreas.

No verão de 1959 – estava, portanto, com 33 anos, provavelmente a idade em que Jean Louise Finch sentou-se para escrever o relato de seu tempo como Scout –, Harper Lee terminou de escrever To Kill a Mockingbird. Publicado em julho de 1960 – o ano da eleição de John F. Kennedy e do primeiro disco de Joan Baez, um ano depois da morte de Buddy Holly, dois anos antes dos Beatles -, o livro foi um sucesso imediato de público e crítica. Em 1961, ganharia o Pulitzer; permanece um sucesso até hoje, com mais de 30 milhões de cópias vendidas e traduzido em 40 idiomas.

Em 1962 viria o filme, dirigido pelo grande Robert Mulligan, um diretor muito menos reconhecido do que deveria. Para o papel de Atticus Finch foi escolhido o ator cujos porte, persona, convicções pessoais mais se aproximavam do próprio personagem – e Gregory Peck, com um desempenho brilhante, levou o Oscar. O filme ganhou ainda os Oscars de roteiro adaptado (para Horton Foote) e direção de arte em preto-e-branco. A garotinha que interpreta Scout, Mary Badham, teve uma indicação ao Oscar; o filme teve também as indicações para os prêmios de melhor filme, direção, fotografia em preto-e-branco e música, para o mestre Elmer Bernstein.

Quero rever o filme mais uma vez, para escrever sobre ele no 50 Anos de Filmes. E só espero que não ocorra a ninguém a idéia de refilmar a história. O filme de Mulligan é definitivo – como o livro. (Na foto abaixo, Gregory Peck, vestido de Atticus Finch, durante as filmagens, com Harper Lee.)

         Sobre os títulos – o original e o brasileiro

To Kill a Mockingbird é um belo título. Na minha cabeça, sempre o entendi como “matar um passarinho” – mal sei diferenciar um pardal de um canário. A palavra inglesa mockingbird, conheço desde que nasci, pra citar Jem Finch, do título original do livro e do filme, e da canção de ninar folk “Mockingbird”, também conhecida como “Hush, Little Baby”, gravada por Joan Baez e Peter, Paul and Mary e mais tarde pelo então casal James Taylor e Carly Simon – a canção é também de uma beleza extraordinária.

 Percebo, no entanto, que há mais nomes de passarinhos do que sonha a nossa vã filosofia. Um dos meus dicionários diz que mockingbird é tordo-dos-remédios. Sei lá se alguém que não é ornitólogo sabe o que é um tordo-dos-remédios – até porque os passarinhos, além de terem vários nomes, costumam ser específicos de algum lugar, e parece que o mockingbird é uma espécie genuinamente americana, como a Coca-Cola e o hambúrguer. A tradutora do livro o chamou de pássaro imitador, e ainda botou uma nota de pé de página: “O imitador-poliglota (mimus polyglottus), o mockingbird dos americanos, é, dentre as aves da família dos mimídeos, a que melhor canta. Seu canto alegre é muito apreciado no sul dos Estados Unidos e ouvido ininterruptamente nas noites de luar. Suas imitações são perfeitas”.

 To mock, imitar, arremedar. Isso eu sempre soube.

O mockingbird, ou pássaro imitador, ou imitador-poliglota, aparece na página 122 do livro. Absolutamente contra sua vontade, mas pressionado pela vontade de atender a um desejo forte dos filhos, Atticus presenteia Jem e Scout com espingardas de ar comprimido.

“Um dia Atticus disse a Jem:

– “Preferia que você só atirasse em latas no quintal, mas sei que vai caçar passarinhos. Pode matar todos os gaios que quiser, se conseguir acertá-los, mas lembre-se que é um pecado matar um pássaro imitador.”

Bem mais tarde, no encerramento da história da infância da garotinha Scout, ela se lembrará da frase do pai.

É, de fato, um belo título, To Kill a Mockingbird. Talvez não fosse um título de apelo comercial no Brasil um livro ou um filme chamado Matar um Pássaro Imitador, ou Matar um Pássaro Canoro. Mas por que raios o livro teria virado no Brasil O Sol é Para Todos?

Eu tenho uma tese. Não é uma informação confirmada, checada, verificada – é só uma tese.

Não sei como o livro se chamou nos diversos países em que foi traduzido. O iMDB informa sobre os títulos do filme. Na França, foi Du Silence et des Ombres, do silêncio e das sombras. Belo, poético, longe do original, mas tem a ver com o clima do livro e do filme. (O livro, na França, foi editado com o título de Ne Tirez Pas sur l’Oiseau Moqueur.) Em Portugal, como aconteceu muitíssimas vezes, os exibidores seguiram os franceses – lá o filme se chamou Na Sombra e no Silêncio. Países de língua castelhana tentaram ficar mais próximo do original. Na Espanha, foi literal – Matar un Ruiseñor. No México, ¿Cómo Matar a un Ruiseñor? Na Venezuela, Para Matar a um Ruiseñor.

Mas de onde raios saiu O Sol é Para Todos?

Aqui vai minha tese. Não consegui comprovação objetiva, factual dela. É só uma tese.

Quem deu o título brasileiro para To Kill a Mockingbird não foram os editores do livro – teriam sido os exibidores do filme. O filme, de 1962, teria chegado ao Brasil antes que o livro fosse traduzido e editado aqui. Aí o povo da distribuidora teria coçado a cabeça, pensado, pensado, até que alguém teria falado: “Olha, teve aquele filme com o Gregory Peck que aqui no Brasil chamou A Luz é Para Todos. Que tal se a gente chamasse esse filme aqui de título original intradutível de O Sol é Para Todos?”

 Aplausos gerais para a idéia.  

Filme lançado, a Civilização Brasileira teria então obtido os direitos, e na hora de titular, teria o título do filme àquela altura já oscarizado.

É uma tese – não é uma informação. Se alguém tiver alguma informação em contrário, por favor, cartas para a redação – perdão, mensagens para o site.

         Depois do grande livro, mais nada

Pouco depois de completar a redação de To Kill a Mockingbird, Harper Lee foi convocada por seu amigo Truman Capote (os dois estão juntos na foto) a viajar para o Kansas, onde o já então consagradíssimo escritor queria entrevistar pessoas a respeito do horroroso crime cometido em uma fazenda. Uma família inteira havia sido chacinada por dois homens, os jornais haviam dado notas sobre a história, Capote ficou fascinado, quis ir ao local, tentar entender a tragédia, escrever uma matéria sobre ela. Como se sabe, da viagem de Truman Capote com a amiga de infância ao interiorzão bravo do Kansas resultou outro dos grandes livros do século XX, A Sangue Frio.

Os dois filmes que foram feitos praticamente ao mesmo tempo reconstituindo a saga de Truman Capote no Kansas fizeram belos retratos de Harper Lee. Em Capote, de 2005, o filme que foi lançado primeiro e ficou mais conhecido, o escritor é interpretado pelo ótimo Philip Seymour Hoffman, e Harper Lee, por Catherine Keener. Em Confidencial/Infamous, de 2006, o ótimo ator inglês Toby Jones fez Capote e Sandra Bullock, numa de suas melhores interpretações, contida, reservada, fez Harper Lee.

Depois de A Sangue Frio, que foi publicado em 1966, Capote não voltaria a escrever. Harper Lee não voltaria a publicar mais nada – sua única obra de ficção é To Kill a Mockingbird. Registrou-se que ela chegou a trabalhar num segundo romance, que teria o título de The Long Goodbye, mas a autora o abandonou. Em meados dos anos 80, chegou a começar um livro a respeito de um assassino em série que cometeu crimes no Alabama, mas, insatisfeita, ela abandonou também o projeto. Sua recusa em dar entrevistas, e o fato de não voltar a publicar, fez a imprensa americana a compará-la a J. D. Salinger.

Por sua única obra, ela continua a ganhar prêmios. Recebeu diversos títulos e honrarias em várias universidades de seu país. Em novembro de 2007, recebeu na Casa Branca (infelizmente das mãos sujas de George W. Bush) a Medalha Presidencial de Honra – o prêmio civil mais alto dado pelo governo americano. Pouco antes, em agosto de 2007, ao ser admitida na Academia de Honra do Alabama, Harper Fee foi instada a dizer algumas palavras à audiência. Respondeu assim:

“ – Bem, é melhor ficar em silêncio que ser um tolo.”

Atticus Finch assinaria embaixo. É uma frase típica dele.

 Dezembro de 2010

9 Comentários para “Não se mata um pássaro que só faz o bem”

  1. Acho que o título “O sol é para todos” pode ser por causa do versículo bíblico em Mateus 5.45 onde diz “..porque Ele faz nascer seu sol sobre os maus e os bons,faz chover sobre justos e injustos…” é só uma tese também,não uma afirmação,mas o título sempre me lembrou essa passagem.

  2. Não me recordo o nome da adptação cinematográfica, mas em Portugal o livro foi traduzido com o nome “Mataram a Cotovia”.

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