Minhas férias

Se eu ainda fosse estudante, e se os professores de hoje ainda se interessassem pelas idas e vindas de seus alunos durante as férias, minha vida estaria resolvida.

Quando o professor de Português olhasse para a classe pela primeira vez e, voz firme e autoritária, anunciasse Minhas Férias, título infalível da redação inaugural de cada ano letivo, eu me poria a escrever tão desbragadamente, que talvez cometesse a valentia de terminar antes de todos, heroísmo de que nunca fui capaz.

Minha história relataria ao professor que, em São Paulo, há alguns anos, no Terminal Bresser, apelidado, temporariamente, de rodoviária dos mineiros, uma mulher e dois filhos pequenos entraram em um ônibus que, noite adentro e asfalto afora, tomou o caminho de uma simpática e pacata cidade da região de Campos das Vertentes, no interior mineiro.

Eu não me esqueceria de ressaltar que a viagem seguia tão normal e rotineira, que quase todos os poucos passageiros cochilavam, roncavam ou sonhavam, quando foram atropelados pela visão de uma vaca atravessada na pista. Deitada, perceberam logo. Morta, descobriram depois.

Passado o susto, e tendo chutado repetidamente a vaca, até certificar-se de que se tratava realmente de um cadáver, o motorista – ajudado por dois ou três passageiros, e outros tantos caminhoneiros – arrastou o inusitado obstáculo até o capim, além do acostamento. Lá, à luz da lua, tratou de esquartejá-lo.

Iniciados os trabalhos, o entusiasmo era geral.

– O dono não vai descobrir mesmo, que mal faz?

– Ele deve ter milhares de vacas! Uma a mais, ou a menos…

– Minha mulher vai adorar, churrasco no Natal!

– E dos bons! Essa raça dá uma carne sem igual!

– Que raça o quê, meu amigo! Esquece isso! Raça o quê! Se é de graça, qualquer carne é a melhor do mundo!

– É isso aí!

Aberto o bagageiro, pernis traseiros e dianteiros, assustadoramente sangrentos, acotovelaram-se e acomodaram-se entre malas e sacolas. Como se estivessem em casa. Como se fossem, também, malas e sacolas. Ah, como se não fossem duas horas da madrugada. Ah, mais grave, como se nem um passageiro, ali, tivesse compromisso de horário. Com ninguém, em lugar nenhum.

Para que o incrédulo professor me acreditasse, eu lhe juraria que tudo isso – e mais até, quem sabe? – aconteceu no dia 14 de dezembro de 1992, nas proximidades de Três Corações.

E acrescentaria: Ainda que os filhos fossem crianças dos anos 90, convivendo, pela TV, com impeachments, como o do ex-presidente Collor, com guerras, como a do Golfo, e com a volta ao passado, como a ressurreição do Fusca, ainda assim, aquela mãe não sabia explicar-lhes o inexplicável.

Se tudo isso ainda não bastasse, eu confessaria ao incrédulo professor: A mãe era eu.

Mãe que tentou, durante o resto das horas que faltavam para que aquela loucura terminasse, tranqüilizar os dois filhos pequenos que, felizes da vida, haviam deixado São Paulo para celebrar os 80 anos da avó, criatura privilegiada, habitante de uma fazenda cheia de vacas ruminantemente pacíficas e humanamente respeitadas. Até estimadas.

As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.

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