Mal rompe a manhã

É esquisito, mas, ás vezes, tenho a sensação de que já fui feliz. Completamente.

 E, ainda que digam que tudo que é bom dura pouco, meu enlevo durou longos oito anos e oito meses, os primeiros da minha vida.

 Pais, irmãos, cheiros, cores, ruídos, sossego, quintal, bichos, córrego, árvores, frutas. Casa clara, cheia de janelas.

 Depois, fui trancada no internato de umas freiras francesas, em São João del-Rei, Minas Gerais. Início do pesadelo.

 Não as missas diárias e obrigatórias, cinco da manhã, mesmo para quem só tinha oito anos e oito meses.

 Nem os silêncios compridos e cumpridos, em salas de estudo e refeitórios.

 Nem os banhos de camisola, a porta do banheiro apenas encostada, sem chave.

 Nem a visão proibida da rua, por onde passavam e passeavam – a pé ou de bicicleta – os garotos da cidade, futuros prováveis namorados.

 Nem os dormitórios sombrios, de onde se avistava, alta noite, o fogo fátuo, no cemitério de São Gonçalo.

 Meu pesadelo era outro. Pontual e repetitivo, ele me assaltava às cinco da madrugada, quando – tortura – uma freira invadia o dormitório, batendo palmas e obrigando nossa sonolência a sair da cama, mãos postas, rezando.

 Após uma eternidade inteira por lá, fui parar em Juiz de Fora, onde a sessão de tortura – felicidade! – começava uma hora mais tarde.

 — Um dia, entro na Faculdade e me vingo, durmo até cansar – jurava.

 Em Belo Horizonte, mal rompia a manhã, lá ia eu, de tortura em tortura, acordando em um ponto de ônibus, cochilando em outro. Mal enxergando, no destino final, os bancos da Praça da Liberdade.

 — Um dia, me formo – jurava.

 Professora formada, acordava com os passarinhos.

 — Um dia, deixo essas aulas e vivo sem horário – sonhava.

 Sem missa e sem palmas, durante anos acordei meus filhos, mal rompia a manhã.

 — Um dia, esses meninos se formam, saem de casa, vou dormir até cansar.

 Formados, ainda em casa, acordam sozinhos, tomam café, se vão.

 Devo ter desaprendido como se dorme até cansar. Como talvez tenha desaprendido como se vive com a sensação, simples, esquisita, de ser feliz. Completamente.

 As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.

4 Comentários para “Mal rompe a manhã”

  1. Sim, Vivina, tentei e tentei. Talvez falhei ou não. Algum dia saberei. A sensação da partilha é doce. Muito obrigada!
    Glória

  2. “Queria ter complicado menos,
    Trabalhado menos,
    Ter visto o Sol se por”

    “Epitáfio”
    Titãs

    A “felicidade” (aquela do Prof. Cortella) não será alcançada por aqueles que não cultivam a simplicidade, que não amam as cores e formas, enfim, pelos seres vazios da rua, amantes do status.

    Beijão para ti e para o Brant.

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