Eles e Amadeus

Faz tempo, faz muito tempo, fui morar numa velho prédio no bairro Campos Elísios, em São Paulo. Falo velho mas não era, necessariamente, um moquifo, uma cabeça-de-porco. Tinha dignidade e até, digamos, certa aura, certo charme. A entrada, por exemplo, conservava, no piso e nas paredes laterais, belas pedras de mármore. O elevador, amplo, sempre limpo, não tinha riscos ou palavrões escritos nas portas. E na entrada social, ostentando sempre uniforme impecável, invariavelmente azul, um porteiro.

Para falar a verdade, só no terceiro ou quarto dia é que descobri que possuía vizinhos. Mas vejam que situação estranha: dos quatro apartamentos do meu andar, além do que eu ocupava apenas um outro abrigava inquilinos. Saquei isso ao chegar em casa, certa noite: do 506 vinha o som da Sonata para Piano, número 11, de Mozart. Pela manhã, fiz perguntinha corriqueira ao porteiro.

– Ah – veio a resposta – só eles moram no 506. Os outros dois apartamentos estão vazios. Precisam de reforma.

“Eles quem”?, poderia ter ido adiante, só que não fui. Afinal, eu os descobrira através de Mozart, o que, sem dúvida, significava uma bela recomendação.

Os vi pela primeira vez num sábado, de manhã. Saía para um plantão na Folha de S. Paulo, onde trabalhava à época e cuja redação ficava pertinho, no instante em que a porta do 506 se abriu despejando para o corredor um senhor. Digo “senhor” pois não poderia considerar exatamente velho alguém que aparentava algo como uns 56. Embromei um pouco na fechadura para esperar a senhora. Valeu a pena, pois levei um agradável susto – surgiu uma linda moça de seus 25, no máximo.

Minha primeira conclusão foi que só poderiam ser pai e filha. Avô e neta? Não, não seria possível. Descemos juntos no elevador e, da jovem, vinha um aroma fino, talvez Channel, perfumista muito badalado na época. Saímos para a rua e, lado a lado, os dois dobraram a esquina.

Nessa noite, ao voltar para casa, ouvi novamente a mesma música, a mesma Sonata. Então, pela primeira vez, me passou pela cabeça que o homem de 56 poderia, muito bem, ser o marido da guria de 25. Marido ou amante.

Daí em diante os dois passaram a fazer parte do meu cotidiano. Geralmente os via juntos, mas, algumas vezes, desci pelo elevador com ela ou com ele, separadamente. Da jovem, nem sequer um olhar recebi, nunca. Do homem, uma ou duas vezes esboçou leve aceno de cabeça. Certa semana, de intenso frio e garoas medonhas, tive vontade de comentar com ele sobre as circunstâncias do tempo. Contudo, fiquei com receio de ouvir um “ …e o que é que eu tenho a ver com isso”?

Numa gelada manhã de sábado eu tomava um conhaque no boteco da esquina quando o porteiro do prédio entrou. Ofereci uma dose a ele e, no instante em que aceitava, o casal saiu. A pergunta subiu à minha garganta, quente, forte como a bebida. “Quem são”?, tive vontade de soltar. Mas não apenas “quem são”. Na verdade queria detalhes, queria saber se o sujeito de 56 era, de fato, o marido, ou pai, ou o amante da rapariga de 25.

Uns dois meses depois fui fazer uma reportagem no exterior. Demorei duas semanas e, regressando, logo percebi que não vinha nenhum sinal do 506, especialmente a música. Assim como quem não quer nada, fui ao porteiro.

– Os meus vizinhos … – comecei.

– Mudaram – veio logo a resposta – e me deram umas coisas. Como tem uns troços que não me interessam, se o amigo quiser…

Demonstrei interesse e acabei levando pra casa alguns livros sobre teatro e cinema e três LPs. Num deles a Sonata para Piano, número 11, de Mozart. Então, mesmo sem perguntar, descobri que eram amantes e tinham separado. Pois só quem separa deixa para trás alguma coisa de Wolfgang Amadeus.

Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular

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