Dois em um

A atual disputa eleitoral, que não me interessa nem um pouco, me traz à lembrança fatos remotos e personagens temporariamente esquecidos. Aqueles dois caipiras, por exemplo.

Um dia – eu era criança – meu pai me segredou que o Getúlio não gostava deles.

Achei esquisito, embora não soubesse muito bem quem era aquele Getúlio que nem ao menos cantava no rádio. Nem sozinho, nem acompanhado.

Eles cantavam. Os dois. Nunca sozinhos. Um sempre acompanhando o outro, nenhum se sobressaindo. Compadres, companheiros. Quase irmãos. Mais, às vezes.

Compadres, companheiros, às vezes mais que irmãos, quando cantavam no rádio, não se sabia qual deles começava, qual continuava. Sabia-se apenas que, formando uma dupla, não passavam de um. Os dois eram Alvarenga, os dois eram Ranchinho.

Irreverentes, irônicos, usavam o microfone para – cantando – dizer aos ouvintes, gente simples, que o país, freqüentemente celebrado, amado e idolatrado, não era tão verde-amarelo assim.

Getúlio, que eu não sabia direito quem era – só que usava botas e bombachas, e tomava chimarrão –, Getúlio não gostava.

E eles, dois em um, dois e um, foram perseguidos, proibidos, calados.

Voltaram, quando novos tempos se anunciaram.

Juscelino, quase compadre, costumava ouvi-los, entre uma serenata e outra.

Entre uma e outra irreverência, uma e outra ironia, microfone sempre à mão, Alvarenga se foi primeiro. Anos mais tarde, Ranchinho.

No país verde-amarelo, quase ninguém se lembrou, o que talvez não tenha nenhuma importância.

Onde estiverem, os dois compadres, mais que irmãos, talvez reinventem a dupla antiga, tentando diminuir – ao menos um pouquinho – a saudade do microfone e do encontro semanal com as pessoas com que – rádios ligados – conversavam, a distâncias sempre infinitas.

Onde estiverem, os dois ex-presidentes, mais que adversários, talvez inventem uma dupla nova, possível – quem sabe? – em paisagens e paragens eternas, sabidamente milagrosas.

Botas, bombachas e chimarrão revelariam um Getúlio surpreendente, tentando entoar, com sotaque mineiro de Diamantina, os primeiros versos de Peixe Vivo.

Tentando descobrir, com o polêmico Presidente Bossa Nova, que espécie de milagre pode mudar a censura em aplauso.

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