“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu.”
Verdade.
Hoje fui dominado por aquela sensação que às vezes vem, mas a gente tenta afastar da cabeça como tenta afastar uma abelha, um pernilongo, as mãos rodando em torno do corpo como hélice de helicóptero, como os braços da jovem Elis Regina: a humanidade é uma invenção que não deu certo.
“Às vezes quero crer mas não consigo,
É tudo uma total insensatez.
Aí pergunto a Deus: ‘escute, amigo,
Se foi pra desfazer, por que é que fez?’”
Os versos de Vinicius são belos, é claro, mas são licença poética, expressão que inventamos para dizer que às vezes podemos fugir da verdade do fatos. Quem desfaz não é Deus (para os crentes), nenhum deus (para os incréus). Somos nós mesmos. A cada dia estamos aqui desfazendo tudo.
Em francês, na versão feita por Moustaki, fica ainda mais bonito:
“Parfois lorsque mon esprit vagabonde
J’essaie de croire qu’il y a un bon Dieu;
Je lui dis ‘pourquoi as-tu fai le monde
Se c’est pour le défaire peu à peu?’”
E me vem à cabeça imediatamente outro verso, “A força da grana que ergue e destrói coisas belas.”
Belíssimo, este, também, de Caetano. Mas não é apenas a força da grana. Dinheiro é parte da coisa, mas não é tudo. A verdade é que nós, as pessoas, podemos e sabemos erguer e destruir coisas belas. E não só, ou necessariamente, por dinheiro.
“A raça humana é uma semana do trabalho de Deus.”
Se os dois geniais parceiros-comparsas, Gil e Caetano, tivessem trabalhado juntos nessa idéia, poderiam ter feito o verso definitivo: “A raça humana que ergue e destrói coisas belas”.
Uma única raça que consegue criar a Nona de Beethoven e os campos de concentração. Que tem Tolstói e Napoleão. Hannah Arendt e Hitler.
Quem desfaz o mundo somos nós.
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Eta papo cabeça da porra.
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De citação em citação, minha cabeça dominada por aquela sensação de que somos uma invenção que não deu certo se lembra do diálogo entre o intelectual inglês Basil-Alan Bates e o homem do povo grego Zorba-Anthony Quinn. Completamente bêbado, tomado pela tristeza profunda, no fundo do poço, Zorba diz:
– “Por que os jovens morrem? Por que qualquer pessoa morre?”
E o intelectual: – “Não sei.”
E Zorba: – “Pra que servem todos esses malditos livros se eles não conseguem te dar uma resposta?”
E o intelectual: – “Eles me falam sobre a angústia dos homens que não conseguem responder a perguntas como a sua.”
E aí Anthony Quinn-Zorba faz uma careta de bêbado, e sentencia:
– “Eu cuspo na angústia!”
Acho esse diálogo do filme de Cacoyannis uma das melhores coisas que o cinema já fez.
Tem tudo a ver com o verso que Caetano e Gil não fizeram: “A raça humana que ergue e destrói coisas belas”.
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Não sei direito por que essa angústia brava me atacou hoje – essa sensação nítida de que fomos uma invenção que não deu certo.
Claro, pode ter a ver com a situação específica do país neste momento. O contexto histórico, ah, sim, o contexto. Uma pessoa incompetente, absolutamente incompetente em tudo o que fez na vida, que jamais havia tido um único voto, sequer para síndica do prédio, prestes a assumir a Presidência da República. O país caminhando a passos largos, apenas 25 anos após o fim da ditadura militar, para uma ridícula, absurda ditadura à la bolivarianismo chavista mas na verdade fascista, sindicatos de trabalhadores, união nacional de estudantes e empresários comprados por dádivas governamentais, numa nojenta mescla de corrupção, compadrio, nepotismo e desrespeito aos valores democráticos básicos. O Sindicato dos Jornalistas para o qual paguei contribuição voluntária durante tantos anos apoiando uma manifestação contra a liberdade de imprensa – uma coisa louca, ímpar na história, um oximoro, os jornalistas contra o jornalismo.
Nunca neste planeta, antes de Lula comprar tudo e todos, os jornalistas tinham feito uma manifestação contra o jornalismo.
Claro, minha deprê pode ter a ver com o profundo mal que o lulo-petismo deixa de herança para o país. Oito anos de elogio da malandragem, da ausência de estudo, da desnecessidade de mérito. Oito anos de pregação de que a lei maior é a Lei de Gérson, tudo contra aquilio em que sempre acreditei, e que meu professor de Filosofia no Aplicação resumiu brilhantemente: “A única forma de alguém crescer é estudando”.
Oito anos dedicados a estabelecer que este país miscigenado durante séculos, em que mais da metade da população é produto de casamentos inter-raciais, tem agora é que ser igual à África do Sul do apartheid, aos Estados Unidos pré-anos 60 da segregação racial oficializada por leis.
Claro, minha deprê pode ter origens mais mundiais. A Suécia, sagrado bastião do progressismo, elegendo um governo de direita pela segunda vez consecutiva, fato inédito em sua história. A França, a pátria da liberdade igualdade fraternidade, proibindo por lei o véu muçulmano em locais públicos e expulsando ciganos.
E todas as ditaduras ao redor do mundo ditadurando – as que ainda se chamam de comunistas, China, Cuba, Coréia do Norte, a teocrática, Irã, as outras simplesmente ditaduras de ditador, Líbia, Guiné Equatorial, Miamar. Mulheres condenadas à morte por apedrejamento, opositores sendo presos e condenados e mortos apenas por fazerem oposição. E todas as ditaduras do mundo sendo paparicadas pelo governo Lula e pelo idiota Celso negócio é negócio Amorim.
Os Estados Unidos, meu Deus do céu e também da terra, os Estados Unidos, logo após a eleição inédita, histórica, de uma pessoa de pele um pouco mais escura, aleluia!, depois de oito anos de obscurantismo bushista, os Estados Unidos, o país para o qual, como dizia, com sua ironia amarga, Leonard Cohen, a democracia tinha que vir primeiro, por ser “o berço do melhor e do pior”, enfrentam hoje o perigo da direita raivosa, talvez até pior que a do mcarthismo e dos anos 20 da época de Sacco e Vanzetti.
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Motivo pra deprê realmente não falta.
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E Dilma, o horror dos horrores, a pessoa que não consegue pronunciar uma frase que tenha sentido, a fantoche que falsifica currículo, que mente em cada frase, que sorri para as câmaras com sorriso mais falso que nota de três guaranis, que jamais tinha tido um voto na vida, que tinha como braço direito essa espantosa Erenice que é a mais perfeita tradução da destruição da República, tem metade das intenções de votos.
É. Motivo pra deprê realmente não falta.
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“A raça humana que ergue e destrói coisas belas”.
Quem sabe amanhã acordo melhor. Quem sabe ouço a Nona de Beethoven, ouço uma Kate Wolf, uma Joan Baez. Vejo um Bergman, um Woody Allen, um Bob Fosse. Me lembro da alegria do jovem octagenário Hélio Bicudo no Largo São Francisco lançando o Manifesto em Defesa da Democracia.
Quem sabe. Mas hoje tá difícil.
Setembro de 2010
Sérgio,
Deprê com zelo, claro.
Mais um texto-lúcido q segue por email p/ os amigos.
Grata
Puxa, Selma, muitíssimo obrigado pela mensagem tão simpática.
Um abraço.
Sérgio