A revelação da minha vida

Dobrei a esquina para a Rua Araújo, com o coração aos pulos. Logo aprenderia que essa expressão – coração aos pulos – morreu com os antigos folhetins literários. Mas, naquela época, eu não sabia disso. Na verdade, não sabia de nada sobre o assunto que me trouxera à Rua Araújo. Mas antes de virar a esquina, portanto antes de ser tomado por aquela sensação tão forte, eu já esperava pelo que viria.

Muitas vezes repetira o gesto – dobrar a esquina – só para isso. No fundo, uma coisa simples. Erguer os olhos e me fascinar com a imagem do velho prédio escurecido, soturno, solitário entre as construções modernas da rua. Acima dos quatro andares, bem lá no alto, o néon refulgindo um nome sobre a rua mal-iluminada: O Farol de São Paulo. Desta vez, eu caminharia pela calçada da pequena rua do centro não para olhar o velho prédio e apenas passar por ele. Eu ia abrir a porta envidraçada e entrar.

 Talvez ainda hoje seja desculpável dizer que minhas têmporas latejavam, quando o fiz. Entrei e vi o balcão da portaria. O homem atrás dele me olhou, e eu olhei para ele, mas não soube como explicar por que estava ali.  Pensei em “sou o novo repórter do jornal”, mas achei pretensioso. Eu nem mesmo sabia se a experiência daria certo. Pensei em muitas outras coisas, enquanto o homem atrás do balcão começava a demonstrar impaciência. O que saiu de minha boca, um tanto vacilante, foi: “Estão me esperando lá em cima”.

Nos poucos pares de segundos que o elevador demorou para atingir o quarto andar fiquei de tal modo ansioso que cheguei a pensar em  desistir. Descer de volta, agradecer ao homem no balcão e sair correndo pela Rua Araújo. Como um rapazola de dezoito anos, que só conhecia o jornalismo como leitor, se atrevia a pisar no templo dos grandes jornalistas, que traziam seu nome assinado no alto dos textos? A porta do elevador se abriu e eu me empurrei para fora. Atravessei um pequeno saguão e lá estava: a redação do mais famoso jornal “espreme sai sangue” da cidade.

Não que eu tivesse predileção por esse tipo de notícia. Mas foi a oportunidade que tive, e eu a agarrei com as duas mãos, se ainda for possível usar essa expressão. O velho prédio com o néon em cima, brilhando com o nome do jornal, me fascinava por oferecer certa atmosfera de tempos passados… Bonnie & Clyde? Bem, já que estava no clima, eu me entregaria de corpo e alma, mesmo que tivesse de usar chapéu e revólver.

O primeiro jornalista que conheci não usava nem um, nem outro, embora, na época, andar armado fizesse parte do charme de alguns repórteres policiais. Rago trazia o colarinho aberto e o nó da gravata afrouxado (o que contrastava com os meus, certinhos) e punha os pés sobre a mesa para ler jornal. De resto, era uma pessoa amável, tanto quanto alguém com uma profissão dessas pode ser.

– Então você quer ser jornalista?

– Sim, senhor.

– Pode esquecer o  “senhor”. Aqui ninguém se trata assim.

(Depois eu veria os contínuos chamar mesmo o editor-chefe por você.)

– Sim, se… hã, compreendo.

Indicou uma mesa com uma máquina de escrever em cima (era uma velha Remington preta) e uma cadeira de madeira. Sentei. Ele disse:

– Um ônibus bateu em um carro aí na Avenida Ipiranga e os dois pegaram fogo. Quando os bombeiros chegaram já era tarde.  Cinco pessoas morreram carbonizadas, presas nas ferragens. Foi às dez da noite.

Olhei para ele espantado. O que queria dizer com isso? Ele devolveu um olhar igualmente surpreso pela minha reação. Mas logo acabou com minhas dúvidas.

– Transforme isso numa notícia.

Demorei um tempo que me pareceu excessivo mesmo para um principiante. Mas terminei, fui à mesa dele e lhe estendi a lauda com umas tantas linhas. “Um grave acidente aconteceu na Avenida Ipiranga, quando um carro e um ônibus que transitavam em alta velocidade bateram e se transformaram em autênticas câmaras ardentes. Os bombeiros…”

Rago leu, enquanto eu prendia a respiração, e isto não era uma imagem literária. O veredicto veio em seguida.

– Uma merda.

Abriu um quase sorriso (não era de sorrir), para atenuar o impacto. Disse num tom cordial:

– O que existe de mais importante é a vida humana. Portanto o fato prioritário, que vai abrir a matéria, são os mortos. “Cinco pessoas morreram ontem…” Outra coisa: é dispensável dizer que o acidente foi grave. Se há mortos… E eu não disse que o carro e o ônibus vinham em alta velocidade. Você concluiu isso, e o jornalismo trabalha com fatos, não com conclusões. Essa história de câmaras ardentes nem vou comentar…

A seguir, tive a revelação da minha vida. O lead.

– Você tem que responder, logo na abertura do texto, o que aconteceu, como, quando, por que e onde. “Cinco pessoas morreram carbonizadas na colisão seguida de incêndio entre um ônibus e um carro, às dez horas da noite de ontem, na Avenida Ipiranga…”

Eu estava extasiado com o lead. Naquela tarde, reescrevi várias vezes a nota, e Rago me passou algumas matérias para ler. Eram notícias já publicadas, mas ler o texto original, nas laudas em que haviam sido escritas, tinha um sabor especial. No começo da noite, afrouxei o nó da gravata. Fizera amizade com alguns repórteres e com os contínuos. O impulso de descer o elevador e sair correndo pela Rua Araújo desaparecera. Na verdade, só à força eu sairia dali.

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